O Ilustrador (parte 2)

Tinha prometido ir almoçar na casa da Bernadete, mas não tava com paciência para a comida da Bernadete e nem para comer a Bernadete depois disso, sei que ela ficaria furiosa, mas logo se acalmaria, sabe que eu apareceria mais tarde, sabe que não tenho muito mais pra onde ir. 
Preferia ter almoçado sozinho, mas a despensa vazia me fez ir almoçar na casa da minha mãe. Minha mãe me recebeu dizendo que eu devia aparecer mais, que tô que é só pele e osso, que devia arrumar uma mulher pra cuidar de mim, quase disse da Bernadete, fiquei quieto mastigando uma batata frita, a Bernadete não é o tipo de mulher que minha mãe aprovaria, chupei uma laranja e disse que tinha que ir, ela me fez prometer que iria cuidar mais de mim, da minha saúde, eu prometi e ela acreditou, quer dizer, eu fingi prometer e ela fingiu acreditar, eu sabia que não ia cumprir minha promessa e ela sabia mais ainda, mãe sempre sabe mais que a gente, mas pensam que fingindo acreditar, os filhos cumprirão o prometido para não magoá-las, nós nunca cumprimos. Senti uma coisa boa quando me despedi dela, uma vontade de dar um beijo na sua testa, não dei, só fui embora, nunca tinha dado um beijo nela, só levaria a mais perguntas, e eu tinha pressa, não havia o que eu pudesse fazer, e fui embora. 
Para que eu tinha pressa?, só se fosse para não chegar ainda na casa da Bernadete. Fui prum parque da cidade cheio de árvores, lagos, ver se conseguia desenhar alguma coisa, umas paisagens. Foi nesse parque que conheci Bernadete, estava rascunhando lá umas tartarugas tomando sol nas pedras e a Bernadete chegou por trás de mim e disse que tava muito bonito o meu desenho. Nem duas horas depois, eu já tava no apartamentão da Bernadete, enfiado no meio das pernas da Bernadete. Depois, enquanto Bernadete se lavava no chuveiro, a Bernadete sempre se lava depois, eu pensei que tudo bem, meus desenhos não me davam o sustento, mas já era alguma coisa se me traziam alguma buceta. Muito depois soube que não foi meu desenho que pegou a Bernadete, nem pra isso servem, foi a Bernadete que me pegou usando meu desenho, tempos depois confessou que achou meu desenho horrível, a cabeça da tartaruga parecia um champignon, champignon é um cogumelo, a Bernadete me disse quando perguntei, mas que elogiou só pra me comer, que nem aqueles caras que dizem pruma gorda que ela não precisa perder peso e a idiota cai direitinho na arapuca, eu também caí, tudo bem, Bernadete é boa.
A Bernadete tem 44 anos, é 18 anos mais velha que eu, tá com tudo em cima, é viúva, viúva fresca diz ela e ri, nunca consegui entender a graça disso, perdeu o marido de quem não gostava e ganhou a pensão dele, que não é muita coisa segundo sua boca, mas é capaz de sustentar uma vida de pequenos vícios e manter os dentes brancos e saudáveis, nunca vi Bernadete fumar, cheirar, injetar, raramente tomava vinho, então achei que seu pequeno vício fosse dar morada a garotões como eu, não era morada grátis, ela cobrava em suor e porra, mas não dava pra reclamar, também nunca perguntei isso pra Bernadete, futebol e religião a gente até discute e condena, os vícios, não, ninguém deve falar e julgar os vícios dos outros, todos nós precisamos de alguns, e se esse era um dos da Bernadete, tudo bem, não importava pra mim. 
Tava sentado num banco lembrando disso e desenhava um martim-pescador que tava morgando na beira d’água, nem sei pra que tava desenhando essa merda, quando chegou um velho e disse que queria saber desenhar bonito assim, pergunto pra ele, se por acaso, ele é, ou conhece, algum editor de livro ou revista de vida animal, ecologia, essas coisas, ele olhou pra mim com estranheza e disse que não, então eu mandei ele ir passear, encher o saco de outro, o velho saiu naquele passo de velho que a gente nunca sabe se é falta de força ou se é só pra gente ter dó, não fui rude com o velho porque ele achou meu desenho bonito, foi porque de que adiantava isso? Senti uma coisa ruim, teria sido capaz de afogar o velho num dos lagos, amarrar seu corpo descarnado nas pedras para ele não flutuar e voltar todo dia pra ver o quanto os cágados e as tilápias já tinham comido dele, mas não havia o que eu pudesse fazer, só o que fiz foi rasgar o esboço do martim-pescador, levantar do banco de cimento, jogar uma pedra no martim-pescador, o filho da puta nem piscou, de tão longe que a pedra passou, e fui embora.

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