Capitão América No ENEM (Ou : Ressuscitem Hitler, Por Favor)

Foi um amigo que me deu a notícia, ontem à noite, por telefone : "Azarão, o Capitão América caiu no Enem".
E saiu a dizer que era o reconhecimento, antes tardio do que nunca, dos quadrinhos como uma forma de arte, como uma metalinguagem, como um veículo dinâmico de informação e conhecimento etc etc.
Fiquei a ouví-lo, sem contestar, primeiro porque nem fazia ideia do que ele falava, Capitão América no Enem, e depois porque tenho poucos amigos, não dá pra ficar brigando com eles por qualquer motivo. Falei que ia ver a tal questão e retornaria a ligação.
Quando dizem que algo finalmente foi reconhecido, querem dizer que o tal objeto, supostamente injustiçado e diminuído em sua importância durante anos, foi alçado a uma dimensão pretensamente maior. 
No caso dos quadrinhos, que eles deixaram de ser vistos simplesmente como quadrinhos e passaram a ser considerados como uma das legítimas expressões do pensamento humano de uma época, elevados a verdadeiras enciclopédias ilustradas, de ciências, história, filosofia, matemática etc, dignos até de serem objetos de uma prova de âmbito nacional, o ENEM.
Grande bosta. Os quadrinhos e o ENEM.
Fui um leitor mais que assíduo de quadrinhos de super-heróis entre 1977 e 2001, era meio fanático, mesmo. Adorava-os na época, e ainda gosto muito dos que ainda mantenho guardados e organizados em velhas caixas com naftalinas, cerca de 3 mil exemplares.
Mas não sou nem nunca fui idiota. Os quadrinhos nunca foram diminuídos em sua importância, eles sempre foram considerados o que são : quadrinhos. Gibi! E gibi é gibi! É pura diversão, puro entretenimento. Dar-lhes qualquer relevância outra é cometer uma injustiça às avessas. Até porque divertir e entreter é função das mais nobres, nada há de depreciativo em dizer que algo é "simples" diversão.
Quando era adolescente, minha afeição aos quadrinhos não era bem vista pelos meus pais, diziam que nada se aprendia com aquilo. E eles estavam certos. Eu também sabia disso, tanto que lia meus quadrinhos e também os clássicos da literatura indicados pelos professores, sempre soube reconhecer perfeitamente a diferença, sempre soube identificar onde eu estava aprendendo e onde estava me divertindo.
Claro que os quadrinhos, sobretudo os de super-heróis, fazem diversas referências à ciência, e isso até pode despertar o interesse do leitor em cursar uma faculdade de química, de física ou de robótica, a exemplos, mas que fique bem claro que o leitor nunca vai aprender química, física ou robótica num gibi. Essa diferença sempre foi bem clara para mim.
Aprender, aprendemos nos livros, sentando o bundão na cadeira e deitando os olhos horas a fio sobre as linhas de um livro amarelado de biblioteca.
E agora vem a merda do ENEM usar a capa da primeira edição americana do Capitão América como se fosse um registro histórico. Não é.
Fui ver a tal questão e ela é "dificílima", acho que nem o próprio Capitão a acertaria, nem o próprio Adolf Hitler. A capa mostra o Capitão América, de escudo em punho, acertando uma muqueta na cara do Adolfinho, e aí vem a pergunta que deveria figurar, inclusive, nos vestibulares do ITA, quiçá nas provas seletivas da NASA: 
Quem o Capitão América combatia? a) Tríplice Aliança, na Primeira Guerra Mundial;  b)Os regimes totalitários, na Segunda Guerra Mundial; c) O poder soviético, durante a Guerra Fria; d) O movimento comunista, na Guerra do Vietnã; e) O terrorismo internacional, após 11 de setembro de 2001. 
Será que é muito difícil o aluno reconhecer a figura do Hitler e associá-la à Segunda Grande Guerra? Notem que havia uma única alternativa com a Segunda Guerra.
A Segunda Guerra foi um evento dos mais complexos da história humana, todo o mundo atual é ainda moldado pela Segunda Guerra, todo o sistema econômico, a produção industrial, o próprio desenho do mapa-mundi (exceção feita à antiga URSS), os governos que dominam o planeta, tudo. Tudo ainda é herança da Segunda Guerra Mundial.
Vem o ENEM e reduz tudo a : a quem o Capitão América combatia? Combatia a puta que te pariu!!!
Como se não bastasse, li várias declarações de professores de conceituados cursinhos a elogiarem a questão. Uma disse que a maioria dos alunos jamais viu a tal capa do gibi, mas assistiu ao Capitão em recente filme nos cinemas, e só do aluno conseguir reconhecer e relacionar o personagem da tela como sendo a mesma figura do papel já mostra que ele possui sei lá que habilidades cognitivas, que ele é capaz de acessar as diversas mídias, seja que porra isso for.
À puta que o pariu, de novo!!! Merda, merda e mais merda.
Quadrinhos de super-heróis não são fonte de conhecimento, não são arte, não são registro histórico. São quadrinhos, e ponto.
O bom e velho Capitão ser usado como objeto de vestibular  não mostra a integração das diversas linguagens, das diversas mídias, das habilidades cognitivas...porra nenhuma! Só vem a mostrar o deplorável nível em que se encontram a educação e o estudante brasileiros.
Pior : uma questão idiota desta, numa prova idiota feito o ENEM, irá credenciar o aluno a ingressar em muitas das Universidades Federais do país. Serão os futuros cérebros do país.
Lamentável.

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2 Comentários

  1. Gostei muito do seu manifesto e epigramático ódio a Deus, gostei do modo português de evitar sempre o nefando gerúndio, gostei das explosões de ira contra as manifestações explícitas de burrice.

    Seu blog promete. Bom ler textos assim.

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