O Possível Voo

Sempre fui de me lembrar bem pouco dos meus sonhos, de uma década para cá, então, praticamente nunca me lembro de minhas andanças durante o sono.
Quando a lembrança deles ainda se dispunha a tomar café da manhã comigo, duas situações oníricas eram recorrentes, uma cidade de paralelepípedos verde-leitosos e meus passos órfãos por essas ruas desconhecidas, e a outra, a campeã de audiência, os meus voos pelo Sonhar, eu voava muito à época.

Meus voos sonâmbulos não eram exatamente voos, eu mais planava, voos mesmo só em duas ocasiões. Em uma, um voo calmo, rente ao chão, pelas ruas do centro da cidade; na outra, um voo agitado, em velocidade próxima à da luz, estroboscópico, eu não possuia muita matéria, era mais um vulto, um fantasma - quem sabe até eu era o sonho de outro dormidor - a voar alto pela cidade, atravessando as estruturas de aço e concreto dos edifícios.
Eu sempre tive vontade de voar, desejo nada original ou peculiar, milhões e milhões de outras pessoas também devem partilhar dessa vontade. Igual à tara de transar com duas gostosas ao mesmo tempo, quase todo mundo tem. E nem dá para chamar de tara, tara é o cara querer transar só com uma, tara é a monogamia.

Mas voltando aos meus voos, sempre tive mais que simplesmente vontade de voar, sempre me julguei com o direito de voar. Se a alguém, um dia, forem concedidas habilidades sobre-humanas, entre elas a do voo, esse alguém tem de ser eu. Eu estudei para isso, foram cerca de 30 anos estudando toda a fauna de super-heróis, observando e aprendendo o que fazer com superpoderes quando eles me chegassem. E os estudei na época em que super-heróis eram super-heróis, não o que foram tornados por essas novas gerações de argumentistas e desenhistas : psicopatas e deformados físicos e morais.

Tudo isso para dizer que, depois de anos, de ontem para hoje, sonhei - e lembrei - que novamente voava; melhor, planava, como de costume. Planava por sobre um descampado de terra que era puro óxido de ferro, desse terral, brotando feito vesículas de pus, raras e esporádicas formações de cor sulfúrea, ipês-amarelos, agora é tempo deles. Mas, como sempre acontece, meu voo começa a perder altitude e acordo antes de me estabacar; por razões que desconheço, isso sempre se dá, a corrente de ar que ampara meu voo começa a me negar seu colo e eu, a derrear.

Ainda assim, acordando sobressaltado, a sensação que fica é excelente, a de que ainda posso voar. Vamos ficando velhos e perdendo as vontades, as forças para realizá-las, a paciência para elas, inclusive.

Constatar que ainda posso planar, elevar-me do chão, mostra-me que pode ser muito bom ficar por aqui mais um tempo.

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