"Meu pai dizia ter sido o primeiro a fabricar um bisturi elétrico na Espanha, embora certamente tenha tirado a ideia de uma publicação estrangeira. Lembro de tê-lo visto inclinado sobre a mesa da oficina, realizando cortes em um filé de carne de vaca, assombrado com a precisão e a limpeza do talho. Não esquecerei nunca o momento em que se virou para mim, que observava um pouco assustado, para pronunciar aquela frase fundacional : - Olhe bem, Juanjo, cauteriza a ferida no mesmo momento que a produz.
Quando escrevo à mão, em um caderno, como agora, acho que me pareço um pouco com meu pai no ato de testar o bisturi elétrico, pois a escrita abre e cauteriza, ao mesmo tempo, as feridas."
Creio que seja a melhor metáfora para a escrita que eu já vi. Bisturi elétrico. Considero que a escrita seja isso mesmo. Fuça, cava, esfola, escarifica mágoas antigas. Não chega a ser a causa da ferida. Corta superficialmente, rompe a armadura, o cisto, e revela a úlcera incubada, mal sepultada, enterrada viva, apenas cataléptica. Tira a ferida do coma para, logo em seguida, desligar os aparelhos que a mantém em sobrevida. Cauteriza-a em definitivo. Cicatrizes sempre podem ficar, é inevitável. Mas cauteriza-a em definitivo.
Isso, é claro, a boa escrita. A escrita ruim, feito a minha, não é um bisturi elétrico. É só um bisturi. Só faz desatar a sangria, só faz berrar tecidos que antes estavam dormentes. Nem bisturi ela é, a minha escrita ruim. Antes um facão de cozinha. Cego. Esquizofrênico. Lacera artérias, fende crânios, decepa membros. Sem precisão. Sem alvo definido. Não torna exangue só a mim. Pode ferir também, e fere amiúde, igualmente, às vezes até em maior profundidade, as pessoas que tomam contato com ela.
2 Comentários
Uma bela metáfora realmente.
ResponderExcluir"J"
“Viver é lutar contra os demónios do coração e do cérebro. Escrever, é pronunciar sobre si o último julgamento”. Henrik Ibsen
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