Padre Anchieta, o Novo Santo do Brasil

Quem nunca viu, lá nos seus tempos de escola primária, mostrada pelas "tias", aquela clássica ilustração com o padre José de Anchieta? O bom jesuíta, de frente para o mar, a escrever poesias na areia com uma fina e longa vara.
É o retrato de um homem espiritualizado, em harmonia com o ambiente que o circunda, absorto e, ao mesmo tempo, contemplativo e reverente ao universo criado por seu deus. Até as gaivotas vêm aos seus pés, sem medo. Ao longe, dois índios o observam, atentos.
Um homem bom, esse padre Anchieta, um homem santo, diziam nossas tias do primário - senhoras respeitáveis, bonachonas, duplicatas exatas da Etty Fraser.
Um benfeitor dos índios, trouxe-lhes a palavra do senhor, a verdadeira fé, diziam emocionadas, lágrimas visivelmente contidas, algumas até faziam o pelo-sinal. E não estavam a nos enganar, as tias. Não deliberadamente. Acreditavam de fato na história do bom jesuíta que veio salvar a alma do índio. Pudera. Foram submetidas à mesma lavagem cerebral, em seus batismos, primeiras comunhões, crismas, casamentos, que o índio.
No entanto, parece que a história é bem outra. Parece que tem caroço nesse angu. Aliás, muito mais caroço que angu. Segundo a pesquisadora Ivânia dos Santos Neves, do Programa de Mestrado de Comunicação e Cultura da Universidade da Amazônia, José de Anchieta não só fazia vistas grossas à matança dos índios pelos portugueses como também chegou a justificar a mortandade em um de seus poemas. Anchieta chegou a admitir que Mem de Sá fez uma “guerra cruel de extermínio”, mas a justificou porque, entre outras coisas, os índios tinham o “hábito horrendo” de comer carne humana.
Escreveu o jesuíta :
“O Governador ouviu com bondade essas palavras
e respondeu: “Se vos fiz guerra cruel de extermínio,
devastando os campos e lançando em vossas moradas
o incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora, esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
a aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça.
Porém, deveis vós observar as leis que vos dito.”
Manda então que refreiem suas rixas contínuas
que expulsem do peito a crueldade e o hábito horrendo
de saciarem o ventre, à maneira de feras raivosas,
com carnes humanas. Também lhes ordena que guardem
os mandamentos do Pai celeste e a lei natural
e ergam igrejas ao eterno Senhor das alturas
em seu torrão natal; aí serão instruídos
na lei divina e de vontade abraçarão com os filhos
a fé de Cristo, porta única do caminho do céu,
Além disso, tudo quanto roubaram dos Cristãos às ocultas
ou por assalto, em tantos anos, os próprios escravos
mortos ou devorados, tudo pagarão e mais os tributos.”

Para Anchieta, os índios que escaparam do extermínio e se converteram ao cristianismo se tornaram puros.
Escreveu:
"Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:
imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,
reso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido"

Em outros versos, Anchieta afirmou que os índios causaram muitos danos aos portugueses, como se algum índio tivesse convidado os portugueses a invadi-los :
"Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!"

É este homem que agora, em 03/04, foi canonizado pela santa Igreja Católica, alçado à condição de santo. Contraditório? Hipócrita, pode até ser; contraditório, nunca.
Tal confusão facilmente se dá pelo equivocado uso coloquial da palavra santo, empregada como adjetivo, sinônimo para bom, benemérito, virtuoso, heróico, probo, honrado.
Santo não é um adjetivo! Santo é um título. É uma condecoração, uma comenda de guerra, é a Silver Star americana, é a Grã-Cruz de Ferro alemã. É uma divisa de honra concedida ao bom soldado, por distinção e bravura. Justamente o que os jesuítas eram : soldados a serviço da Igreja e, consequentemente, da Coroa Portuguesa, visto que Igreja e Estado eram unos à época. Soldados da catequese.
O que é catequizar, se não um eufemismo para amansar, adestrar, domar, subjugar? Na verdade, acho que catequizar é uma hipérbole disso tudo. O papel da Companhia de Jesus era tornar o índio mais receptivo e dócil à ocupação portuguesa. Se fosse por bem, pela aceitação da palavra de deus, tanto melhor; senão, o chicote velho cantava no lombo do índio, a implacável e inquebrável vara de deus lhes fustigava o couro.
Não é à toa que os dois índios do quadro olham Anchieta de longe, guardando uma distância segura. Sabem muito bem, nada bobos que são, que a vara que escreve poemas é a mesma que lhes lanha as costas.
Repito : santo não é adjetivo. É um título honorífico. Uma medalha dada aos melhores soldados em reconhecimento por serviços prestados; no caso : auxiliar na expansão do território, do poder e da riqueza da Igreja Católica e da Coroa Portuguesa. Em tal missão, Anchieta e sua Companhia de Jesus foram eficientíssimos.
Surpreende-me que somente agora a eclesiástica comenda lhe tenha sido outorgada, e não já no século XVI. A Igreja vai ter que pagar o retroativo pro santo.
E tem mais : Anchieta ganhou a canonização no tapetão. Para ser canonizado, o sujeito tem que ter, pelo menos, dois milagres confirmados : o primeiro destinado à beatificação e o segundo, ocorrido depois da beatificação, é contado para a santificação. Anchieta não teve nenhum milagre confirmado, embora dele se diga que tenha amansado feras e feito recuar tempestades. A canonização de Anchieta se deu por decreto, por uma canetada do Papa Francisco I, o que é chamado de canonização equipolente, ou seja, pelo conjunto da obra.
O que só vem a evidenciar ainda mais o que eu disse, que o santo serve mais à igreja que ao fiel propriamente dito. Fabricar mais um santo brasileiro é uma forma de agradar aos católicos daqui, agrado que se faz mais que necessário. O Brasil é o maior país católico do mundo; na Europa, em países como Alemanha, França e Inglaterra, igrejas católicas são fechadas dia a dia, numa preocupante progressão. De mais a mais, Papa Francisco I também está a puxar a brasa para sua sardinha, ele fez toda sua carreira na Igreja Católica na ordem jesuíta, a mesma de Anchieta.
Mas dos quadros que já vi representando José de Anchieta, o dos versos na areia não é o meu preferido. Gosto daquele da onça. Que onça?, vocês perguntarão. No que eu responderei : aquela pintada que eu te dei.
Vejam que empulhação pra cima do cristão! Que patifaria! Que má-fé! A onça-pintada treme ante a fé do jesuíta, abaixa-se quase que em subserviência à imagem da cruz, recua frente ao poder de deus imbuído em Anchieta.
Ora porra, só reconhece a autoridade e teme o poder da cruz quem é cristão, para quem não, ela só é um artefato inútil, de decoração, na melhor das hipóteses. Seria a onça-pintada do quadro uma prosélita do cristianismo? Uma renegada de sua família, os felídeos? A vergonha de seus primos leões, grandes apreciadores de carne cristã? Ou, então, a resposta é bem mais simples e, inclusive, verossímel : é uma onça-pintada vampira.

Postar um comentário

2 Comentários

  1. Essa Anchieta era mesmo um FDP dos grandes e esse pintorzinho vai na mesma linha dele: enganar nossos nativos com essa patifaria de "proteção divina". Deixasse eles frente a frente com uma verdadeira pintada, eles sairiam com o rabo em desgraça.

    ResponderExcluir