Da canção As Minas do Rei Salomão, de Raul Seixas:
"Do passado me esqueci
No presente me perdi
Se chamarem, diga que eu saí"
No presente me perdi
Se chamarem, diga que eu saí"
Quem chamarem? O sono interrrompido e ainda desejado, o café mal assoprado que nos desce de viés pela garganta, o abraço e o beijo apressados na esposa e no filho antes de sair, o trânsito constipado, o ônibus lotado, a manhã que raia e nem vemos, o expediente, a rotina, a sub-rotina, os quinze minutos para tomar um café, pitar um cigarro, dar uma mijada, contar ou ouvir uma piada velha, a hora de 40 minutos do almoço, o marmitex, a fila do banco, a fila do mercado, as senhas e o esperar pelo nada, a faxina de Sísifo, fazer a janta, lavar a louça num eterno e perdido combate contra copos, pratos e talheres que surgem por brotamento, por geração espontânea na pia, o encanamento do banheiro a vazar, a ração das gatas, o imposto de renda a declarar, o anoitecer no sofá, a cerveja como lenitivo, o desmaiar, não o dormir, o repouso entrecortado - carros, guardas-noturnos, bêbados e biscates em altos berros, gatos no cio a nos fazer inveja, a bexiga velha que já não aguenta mais que 2 horas sem se aliviar, de novo o sono interrompido, o dia que nunca chega diferente do seu jeito de sempre chegar..., enfim, a vida.
Se a vida me chamar, diga que saí, é o que quis dizer Raul.
A existência é boa e simples. A vida é que estraga e complica tudo.
À existência, bem disse Descartes, basta o pensamento. E eu concordo com ele. Um dos poucos filósofos com quem concordo, conquanto, e justamente por isso, um matemático antes de tudo.
Mas o que fazer com os que não pensam, isto é, com a grossa e disforme massa, 95% da população? Como dar a eles a sensação de que existem e, assim, mantê-los sob controle? Fácil. Basta lhes fornecer um simulacro de pensamento, um genérico da existência : a vida. Enchê-los de atribulações e aporrinhações, tomar todos os minutos de seus dias em tarefas repetitivas, ad infinitum, para fazer parecer que são capazes de resolver questões complexas, capazes de organizar algum pensamento, alguma ação coordenada.
Acontece que "pensar" sobre a conta de luz atrasada, sobre o problema no trabalho, decidir o que comer no almoço, controlar o cheque especial e o cartão de crédito, fazer pesquisa de mercado para comprar um novo carro, TV ou celular, trocar a resistência do chuveiro etc, simplesmente não é pensar, não é existir. É só viver.
Cartesianamente dizendo, existir implica diretamente em pensar. E mais : pensar, especificamente, em uma única coisa : na existência. Um é condição sine qua non do outro, pensamento e existência.
Assim posto, quantos realmente existem, a não ser como números, como baterias recarregáveis, lenha para a Matrix? O cara parado no ponto de ônibus, hipnotizado pelo celular, existe? Porra nenhuma. O sujeito assistindo a um jogo futebol? A mulher a alisar o cabelo no salão de beleza? As pessoas comendo em bandos nos restaurantes self-service? O professor professando sua disciplina? O policial policiando? O médico diagnosticando? Um casal trepando? Porra nenhuma, também. E desafio qualquer um a me provar por x + y que sim.
O que desgraça tudo, porém, é que a maioria sempre se impõe; dessa forma, a vida se impõe à existência. E aqueles aos quais a existência bastaria são também obrigados a viver. Passam seus dias afoitos, angustiados, não veem a hora da vida se distrair, para poderem existir : a existência só ocorre na ausência da vida, ou em algum de seus intervalos. Os que existem ficam como almas penadas, como espectros fantasmagóricos, alternando-se entre dois planos, duas dimensões : existência, vida, existência, vida...
Com certeza, devem conhecer aquele sujeito que faz seu serviço rapidinho, eficiente, sempre a aparentar nervosismo e afobação, de cara amarrada e azeda, como se odiasse sua labuta. Ele não aparenta, ele está mesmo nervoso e afobado, ele de fato detesta seu serviço.
Se o faz rápido e de forma eficiente não é para ter tempo livre de ir ao shopping (ele odeia shoppings), não é para confraternizar em um bar ou em um restaurante (ele odeia confraternização, aglomeração, cacofonia de vozes humanas e pessoas falando alto e de boca cheia). Se o faz rápido e de forma eficiente é para ficar livre da vida, para poder existir um pouco. No fim da noite, no escuro, meia hora que seja.
Com meus parcos e porcos recursos, escrevi essas poucas - e acredito que confusas - linhas. Se tivesse uma formação e um estofo mais filosófico, digamos assim, se conhecesse os jargões do muito falar sem nada dizer, se soubesse citar um sem-número de autores, se dominasse a arte do embromation, escreveria um ensaio, talvez um livro.
Só que Raul Seixas foi um gênio, bastou-lhe uma única linha : "Se chamarem, diga que saí"
Perfeito. Irretocável. Raul saiu, para existir um pouco.
1 Comentários
Grande Raul...falar o que, se ele já disse tudo?
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