Minha mãe, quinzenalmente, se não me engano, compra a revista Ana Maria, da Editora Abril. Para quem não conhece a publicação, nunca a viu em uma banca de jornais e revistas nem - quase que impossível - exposta nas laterais dos caixas dos supermercados, Ana Maria é mais uma dessas revistas de TV e variedades, editada sobre dois grandes carros-chefes.
O primeiro, dietas milagrosas anunciadas em letras garrafais à direita da capa, a exemplos : "derreta 3 kg em uma semana com a dieta da gelatina", "ciência descobre o azeite que emagrece", "nossa leitora secou 14 kg sem dieta", "aprenda a fazer farinha que seca até 5kg", e a coisa segue nessa linha do absurdo. O segundo atrativo, anexo à revista, um pequeno livrinho de receitas, das mais calóricas possíveis.
De onde se vê que é uma revista de editorial e orientação cristãos, alicerça suas vendas na gula e na culpa, e na sua consequente penitência, a dieta, a privação. Por isso, vende pra caralho.
Minha mãe a compra pelo livrinho de receitas, as quais raramente fazem a transposição das páginas coloridas para o fogão, mas ainda assim as coleciona.
A capa da revista estampa comumente uma mulher em trajes sensuais e provocantes, que, supostamente, teria conquistado suas formas desejáveis através da dieta em destaque na edição. Ou seja, tem sempre uma gostosa inexpressiva na capa - inexpressão que pode ser advinda ou da cabeça vazia (algumas tão vazias que nem o diabo as quer para oficina), ou do botox a lhes envenenar a musculatura facial, ou do photoshop, ou, como se dá na maioria dos casos, da união desses três fatores.
Quando, geralmente aos sábados, vou almoçar na minha mãe, abro uma lata de cerveja para esperar pela boia e pego a revista Ana Maria para dar uma olhada na gostosa. Mas não pensem que a revista se limita apenas a isso, não. É uma revista que faz valer sua função de utilidade pública da primeira à última linha.
Tem ainda horoscópo - esses astros vagabundos e seus gigolôs, os astrólogos -, coluna social de bicho de estimação (é verdade, as pessoas enviam fotos dos aniversários de seus cachorros, gatos, calopsitas, iguanas, sogras... e a revista as publica), dicas de posições sexuais e artifícios eróticos para apimentar (sic) o casamento de 20 anos do barrigudo broxa e da gorda de tetas caídas e calcinha bege, técnicas para domar (sic, de novo) o cabelo alisado etc etc.
E em meio a tanta erudição, perdido entre tanto enciclopedismo, e agora falo sério, um respiradouro, uma nesga de pensamento autoral, de opinião : a Crônica da Xênia.
Há alguns jornalistas, cronistas, articulistas, ou como queiram chamá-los, que muito aprecio, João Pereira Coutinho, Ruy Castro, Contardo Calligaris, Luiz F. Pondé, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Eliane Brum etc. E outros com os quais simplesmente não gasto mais milissegundo do meu tempo, Gilberto Dimenstein, Marcelo Rubens Paiva, Rosely Saião.
Até sábado passado, Xênia Bier ocupava um nicho intermediário entre os meus preferidos e os meus preteridos, um limbo, uma espécie de geladeira em que mantenho os autores dos quais nunca li nada que me surpreendesse tanto nem nada que me desagradasse profundamente. Até sábado passado... quando li a crônica de Xênia a respeito da morte de José Wilker.
Percebo agora que muito da minha "resistência" à Xênia nunca foi em relação a ela propriamente dita, mas sim aos veículos em que seus textos são publicados, as revistas de TV e fofocas, destinadas a um público para o qual a leitura serve basicamente para identificar o itinerário do ônibus que o leva e traz do trabalho para casa, ou, num supremo esforço, para ler suas mensagens no celular e no twitter. O que impede, obviamente, que Xênia escreva textos maiores, mais elaborados, mais críticos, que se aprofunde mais em um determinado assunto ou tema. Xênia é obrigada a tirar leite de pedra, nem que seja leite desnatado, de soja.
Na crônica, que logo reproduzirei abaixo, Xênia começa dizendo que não chorou nem lamentou a morte de José Wilker, pois ele teve a morte dos abençoados, morreu dormindo. Até aí, nada de mais. Aposto que a maioria concorda com ela e também deseja para si igual destino. Mas, em seguida, tasca uma provocacão das boas, das brabas. Diz que tem pavor da velhice, da decrepitude, de ter que depender dos outros, diz que a velhice é uma merda. Melhor morrer antes da decrepitude.
Concordo. Mesmo que o infarto que vitimou José Wilker o tenha acordado por alguns instantes, por mais aguda e lancinante que possa ter sido a dor provocada por ele, ele foi breve, definitivo. Doeu menos tempo que uma topada de dedão no batente da porta, que um chute no saco, que uma dor de cotovelo. E muito melhor, mas muito melhor mesmo, que sofrer a podridão de um câncer que se espalha, ou a perda de identidade por um Alzheimer.
Xênia dispara : É preciso ser calhorda para chamar a velhice de “melhor idade”.
Concordo com ela, em gênero, número e grau. Estou a beirar os 50 anos e é nítida e triste a diferença que sinto de quando eu tinha trinta e poucos, quarenta anos (melhor nem comparar com os 18 anos, sob risco de profunda depressão). O corpo reage pior e mais lentamente a tudo, uma gripe leva um mês para sarar, uma pancada no joelho ou uma pisada em falso, que forcem um pouco um tendão, um ligamento, são dores para o resto da vida, e as ressacas, então? Dão até vergonha!
Vou mais longe que a Xênia : e nem há, à guisa de compensação pelo corpo fraco, a tão alardeada aquisição de sabedoria, que viria com a experiência de vida e nos tornaria em anciãos sensatos e serenos, modelos de equilíbrio para os mais novos.
A sabedoria via velhice também é outra falácia : não ficamos mais sábios com a idade, só ficamos mais velhos. Não ficamos mais amáveis ou compreensíveis, só ficamos mais fracos, menos capazes de levar tudo a ferro e a fogo, sem forças para aguentar o tranco de um revés. É a debilidade que nos faz pensar mais antes de encararmos uma briga, é a desvantagem física que nos torna mais cautelosos e contemplativos. A velhice nos torna mais medrosos, não mais sábios.
Não sei se alguém realmente acredita nessa balela de "melhor idade", "feliz idade" e o escambau. O que é clara e nítida, para mim, é a existência de um grande segmento de mercado de olho na aposentadoria dos velhinhos. Um comércio de ilusões de eterna juventude. Vitaminas, poliminerais, suplementos alimentares, reposições hormonais, viagra, ginástica, bailes da velha guarda (os famosos "desmanches"), excursões para Caldas Novas. Daí essa puxação de saco para cima dos velhinhos, esse samba-exaltação de suas artroses, diabetes, hipertensões, cataratas, osteosporoses e safenas. A ideia é manter os velhinhos ativos, ao menos economicamente, engambelá-los para que consumam feito adolescentes, feito idiotas deslumbrados.
Abaixo, reproduzo a crônica de Xênia, deixando expressa aqui a minha vontade de lê-la em textos maiores, em publicações mais voltadas para quem gosta de ler.
Não chorei pela morte de José Wilker
Não chorei a morte de José Wilker, nem lastimei. Também não fiquei deprimida, mas sim serena, porque ele teve a morte dos abençoados: morreu dormindo. Que prêmio! Claro, por merecimento.
Agora minha cara leitora vai ficar chocada com o que vou escrever, mas hipocrisia não combina comigo. Detesto quem elogia velhice, tecendo mentiras em torno de uma tragédia.
A velhice é o maior castigo que cai sobre a humanidade. É a hora de pagar todos os nossos pecados. É preciso ser calhorda para chamar a velhice de “melhor idade”. Perdemos a fisionomia. Me olho no espelho e penso: “Quem é essa velha que me encara?”
São poucos os que escapam de diabetes, infarto, das terríveis dores reumáticas, da pressão alta, do Alzheimer. E quando a gente começa a sentir que precisa depender dos outros? Esse é meu maior pavor! O horror quando vou ao médico e a enfermeira começa a me chamar com voz mansinha de queridinha, bonitinha – tudo no diminutivo –, já vou dizendo: “Sou velha, mas não sou retardada”. E todos os olhares de impaciência quando você demora a abrir uma bolsa, por exemplo. Ser velho passou a ser motivo de xingamento.
Por tudo isso, não choro mais quando um companheiro vai embora, volta pra casa. Um homem brilhante como José Wilker, ator deslumbrante, culto e sensível, se alguém lhe perguntasse se queria viver mesmo que doente, tenho certeza de que ele escolheria a morte. Voltou para casa, numa viagem em que fechou os olhos e acordou na casa do Pai. Ele merecia!
5 Comentários
Sensacional, adoro ler coisas inteligentes.
ResponderExcluirSensacional, adoro ler coisas inteligentes!
ResponderExcluirSensacional, adoro ler coisas inteligentes.
ResponderExcluirVocê é especial de uma inteligência rara. Espetacular. Te acompanho desde os meus 20 anos de idade.
ResponderExcluirComo me fez crescer!
Só tenho que agradecer o mais que elogioso comentário. Desde quando acompanha o blog? Deixou-me muito curioso quanto à sua identidade. Não me faria o grande favor de me dizer quem és? Prometo que não publico o comentário com seu nome.
ExcluirDe novo, muito grato.