O Azarão - Markus Zusak

Dia desses, minha esposa precisou viajar a trabalho, ausentou-se por dois dias e, lembrança da viagem, presenteou-me com um livro : O Azarão, de Markus Zusak, autor do mundialmente famoso A Menina Que Roubava Livros.
Da orelha do livro : o livro surgiu como um "projeto paralelo" de Zusak, em um momento em que ele estava "encontrando dificuldades com outras histórias".
O cara devia tá empacado no meio de alguma história, prazos estourados com seu editor e resolveu escrever uma narrativa mais curta, um texto mais leve e despretensioso, fazer um extra, um "bico" para pagar as contas e nasceu "O Azarão", o primeiro trabalho juvenil do autor. Ou, o que se convencionou chamar, hoje em dia, de livros para o público juvenil.
Na minha época de jovem, líamos Julio Verne, Agatha Chrstie, Sir Conan Doyle, H.G. Wells. A atual literatura juvenil é, em grande parte, composta por relatos de autores de meia idade acerca das próprias adolescências, ou seja, das desventuras de garotos de 15, 16 anos, tímidos e ineptos em suas tentativas de conquistas amorosas, indecisos sobre seus futuros, cheios de espinhas na cara, punheteiros de mão cheia (todo punheteiro é de mão cheia).
Não sei se hoje eu fosse jovem, interessaria-me por esse tipo de história, por narrativas sobre adolescentes desajeitados e fracassados, como eu e os outros 90% da população quando nessa faixa etária. 
Eu até poderia, claro, me identificar com esse tipo de personagem e  coisa e tal, mas daí a ler o livro, não sei, não. Sempre vi e me servi da literatura como um modo de travar contato com novas informações, novos mundos, com realidades bem diferentes da minha. Se bem que entre relatos de punheteiros e sagas sobre vampiros "sensíveis" e viadinhos, não tenham dúvidas, eu ficaria com a primeira opção.
Contudo, o livro é bom. Narra, sim, os fracassos do jovem Cameron Wolfe, mas não é choroso nem lamurioso, tampouco piegas ou cheio de autocomiseração. E o principal, lógico, independente da qualidade do livro, foram a lembrança e o carinho de minha esposa em comprá-lo para mim, um livro cujo título é a mesma alcunha que me acompanha há 25 anos, o Azarão. Apelido do qual, acredito, ela nunca tenha gostado muito. Que esposa gostaria?
Com o passar do tempo, porém, parece-me que ela viu e compreendeu o tom de brincadeira e grande amizade que há por trás do apelido, dado por meu amigo Fernandão. Ter me presenteado com O Azarão, acho que foi uma maneira, não verbalizada, dela dizer que aceitou meu alter ego, que sabe que Clark Kent e Super-Homem são duas pessoas diferentes, mas perfeitamente possíveis de habitar o mesmo corpo. Se bem que eu acho que o Azarão não é o meu Super-Homem nem meu Clark Kent, é a minha kriptonita.
Para terminar esse blá-blá-blá, reproduzo um trecho do livro de que gostei muito, um sonho narrado pelo protagonista Cameron Wolfe.

"É uma multidão imensa, umas oito fileiras, por isso, é muito difícil abrir caminho.
Me ajoelho.
Rastejo.
Procuro brechas e, então, passo por elas, até finalmente estar lá. Estou diante da multidão, que forma um círculo gigante e espesso.
— Vai! — berra o cara perto de mim! — Vai pra cima! Parado, olho para a multidão. Não assisto à luta. Não ainda.
Tem todos os tipos de pessoas no meio da multidão. Magrelas. Gordas. Negras. Brancas. Amarelas. Todas acompanham e gritam para o centro do ringue.
O cara perto de mim está sempre gritando no meu ouvido, perfurando meu crânio, indo direto para o cérebro. Sinto a voz dele nos meus pulmões. Ele grita muito alto mesmo. Nada consegue detê-lo, nem os caras atrás dele, xingando para fazê-lo calar a boca. Não adianta.
Tento pará-lo, fazendo uma pergunta, um grito acima do restante da multidão.
— Pra quem você está torcendo? — pergunto.
Ele para de fazer barulho. Na mesma hora.
Olha.
Para a luta. Então, para mim.
Passam-se mais uns segundos, e ele diz: — Estou torcendo pelo azarão.
E é aí que dou uma olhada na luta, pela primeira vez.
— Ei! Tem alguma coisa esquisita.
— Ei! — chamo o cara de novo, porque só tem um lutador naquele círculo imenso, barulhento e agitado. Um garoto. Ele está socando com força e se movendo, bloqueando e agitando os braços para coisa nenhuma.
— Ei, por que só tem um garoto lutando ? -pergunto de novo para o cara perto de mim.
Dessa vez, ele não olha para mim, não. Continua concentrado no garoto dentro do círculo, que luta de modo tão intenso e ninguém consegue desviar os olhos dele.
O cara fala comigo.
Uma resposta.
Diz: — Ele está lutando contra o mundo.
E, agora, observo o azarão no meio do círculo lutar, pôr-se de pé, cair e voltar a se apoiar nos quadris e nos pés, e lutar de novo. Ele continua na luta, por mais que caia. Levanta. Algumas pessoas comemoram. Outras riem agora e xingam.
Não consigo me segurar. Observo.
Meus olhos ficam inchados e ardem.
— Ele pode vencer? Pergunto e, agora, também não consigo desviar os olhos do garoto no círculo."

Respondo ao angustiado jovem : Não, caro Cameron, ele não pode vencer. Nunca.

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