O ano : 1992. O local : USP – Ribeirão Preto, Departamento de Química. O contexto : vitória da nova chapa à direção do CENEQUI (Centro de Estudos em Química), depois de uma longa hegemonia da gestão anterior, uma hegemonia quase que Castrina.
Vitória de uma uma nova chapa da qual, sabe-se lá por quê, essa criatura abominável que vos fala era um dos componentes. Não me lembro ao certo, eu devia ser um sub-vice-alguma-coisa.
A alegria dos membros da chapa vitoriosa foi compartilhada com seus eleitores em uma estrondosa e nababesca festa, realizada na república de meu grande amigo Fernandão, e que ficou conhecida para todo o sempre, que penetrou para os anais da história como a Festa da Chap’eleita. Numa nada sutil referência à chapeleta, a famosa cabeça do caralho.
Amainadas as euforias da vitória e da festa, o presidente do Cenequi me procurou e propôs que eu confeccionasse um jornal, um informativo do Cenequi, cujo primeiro número trataria da eleição e da festa de comemoração. Perguntou se eu gostaria de ficar à frente do jornal.
Pããããta que o pariu!!! Era convidar o vampiro a entrar em sua casa, era perguntar à raposa se queria ser a zeladora do galinheiro. Sempre fui de escrever. Muito antes de me dar conta que gostava de escrever, eu já escrevia continuamente e em quantidade.
O início de minha produção "literária" foram as cartas, na boa época do envelope, do selo, do esperar 2 ou 3 dias para que o que "dissemos" chegasse ao amigo. De meados da década de 1980 a quase fins da década de 1990, enviei (e recebi) cerca de 500 cartas, sendo que o grosso dessa obra se divide entre as remetidas para o meu primo Leitinho (perto de 100 missivas) e para meu amigo Margá (coisa de umas 250), guardo-as até hoje. E não eram cartas breves, de forma alguma. Eram cartas de duas, três, muitas vezes de quatro páginas de caderno. E tudo de sacanagem, de tiração de sarro.
Sempre tive esse viés irônico : para mim, o que não pode ser ironizado, não me interessa. Para mim, o que não pode ser ironizado, não é sério. Em parte, nasci com esse pendor para o sarcasmo - sim, nascemos com certas pré-determinações -, e para completar a desgraça, minhas primeiras leituras foram os livros da série O Sítio do Pica-pau Amarelo, a chamada obra infantil do clássico e insuperável Monteiro Lobato. Infantil em termos. Adultíssima, isso sim. Através do Sítio, sobretudo via a figura da boneca Emília, um avatar de Lobato, tenho certeza, Lobato dizia coisas que não podiam ser ditas em sua obra "séria". Leiam A Chave do Tamanho e verão um pouco do que digo. Querem maior primor de mordacidade que Emília, a boneca de olhos de retrós e estofo de macelinha? Emília não poupava ninguém, Dona Benta, tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho, o Visconde de Sabugosa, seu sparring favorito. A boneca sempre ia no feridão.
Para dar o toque final à mistura, em fins da década de 70, tive contato com a revista MAD, que estava em seu auge criativo. Aquele humor judeu americano, sutil, refinado, sardônico. Eram épocas, ainda, do programa de TV "Os Trapalhões". Didi Mocó, Dedé, Mussum e Zacarias, em todos os domingos, destilavam suas irreverências e nos divertiam com seu humor mais do que politicamente incorreto, que é o único humor engraçado. Nada escapava deles.
Daí para frente, a ruína estava instalada, irreversivelmente.
Por isso, à pergunta do presidente do Cenequi, se eu queria ser o editor do jornal (ainda sem nome, incumbência que também caberia a mim), num brado retumbante, respondi que sim.
Não sei o que ele pensou que seria o jornal. Talvez um mero informativo do resultado do pleito e, quanto à festa, uma série de pequenas notas simpáticas sobre o evento, tipo coluna social, Joyce Pascowitch. Mas ele contratara o Azarão, e era o Azarão que ele iria ter. E foi o que ele teve.
O nome do jornal me veio quase que de imediato, num lampejo de genialidade : O Pasquímico, em clara alusão e homenagem ao mítico O Pasquim. Agora é que eu não poderia mesmo editar um mero jornal de variedades todo comportado e educado; mais do que nunca, eu teria que honrar meu ancestral.
Bom que se diga que todos os casos relatados foram reais, aconteceram realmente durante a Festa da Chap'eleita, e também que, com uma única exceção, todas as pessoas citadas leram o material antes dele ser publicado. Nenhuma se opôs, acharam até muito engraçado etc.
E o número zero de O Pasquímico saiu! Mimeografado. Datilografado em stencil roxo numa velha Olivetti portátil de tipos gastos e fita puída que jazia abandonada na sede do Cenequi. Guardo o stencil até hoje, a matriz de O Pasquímico, assim como algumas cópias remanescentes.
Saiu o nº zero de O Pasquímico. Não houve o nº 1, o nº 2... Acontece que minha modesta gazeta, minha marrom subliteratura, teve um alcance maior que o pretendido. O Pasquímico era para ter sido um jornal "caseiro", destinado apenas aos poucos alunos de graduação da Química.
O Pasquímico acabou por cair nas mãos dos da Biologia e dos da Psicologia - cursos com os quais coabitávamos a mesma unidade no campus, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP), ou seja, meu pobre jornal chegou a pessoas que nada entendiam ou sabiam da dinâmica das relações dos químicos, caiu em mãos alienígenas.
E em piores mãos, O Pasquímico não poderia ter pousado : os da Biologia - os que estudam a "vida" -, os da Psicologia - os que estudam a "alma". Dá pra haver gente mais presunçosa, mais cheia de si, dona da verdade e cagadora de regras que essa? Mais do que pretensamente estudar a vida e a alma, esses canalhas julgam-se donos delas, autoapropriam-se como se invenções suas fossem, como se suas patentes, suas marcas registradas. Delas, só os seus pronunciamentos e opiniões são dignos de apreciação.
Acredito que, à época, a expressão "politicamente correto" ainda não houvesse sido cunhada, mas esse pessoal já era seus xerifes, seus patrulheiros, a canalha patrulha do pensamento.
O Pasquímico foi execrado pelos imbecis, houve um repúdio público a ele. Uma cópia do jornal foi parcialmente incinerada - sim, a intelligentsia Uspiana tacou fogo em O Pasquímico. Deixaram restar só o canto superior esquerdo do jornal, e esse resto mortuário de bordas crestadas foi afixado com tachinhas no mural do C.V. - o Centro de Vivência da Filô, a saber, um local com mesas de sinuca e de pingue-pongue, cercado por frondosas árvores em cujas sombras os inteligentinhos da vida e da alma se reuniam para fumar maconha e revolucionar o mundo com seus pensamentos. Tô para ver quem consuma mais maconha que os da Bio e os da Psico.
Um parênteses : curiosamente, o ano de 1992 foi o ano do impeachment do presidente Fernando Collor. Os "estudantes" pintaram suas caras de verde e amarelo e foram às ruas pedindo por seu impedimento, lutando pela manutenção de nossa bela democracia etc etc. Esses idiotas, que pensam mesmo ter tido alguma influência na queda de Fernando Collor, ficaram conhecidos como a geração dos caras-pintadas. Pois foram os mesmos caras-pintadas, defensores da democracia, que queimaram O Pasquímico. As duas vítimas dos tobas-pintados : o presidente Fernando Collor e O Pasquímico. Mais que canalhas, os cus-pintados, manipulados pela Rede Globo via minissérie Anos Rebeldes (ou Dourados, sei lá) : hipócritas. Fim do parênteses.
Pois O Pasquímico foi queimado e crucificado pelos defensores das baleias e pelos mamadores do charutão do Freud. Jamais supus tamanho elogio! A minha melhor crítica literária, sem dúvida. Senti-me envaidecido. O próprio herege na fogueira da inquisição. O Pasquímico entrara para o Index Librorum Prohibitorum do suprassumo da inteligência da USP.
Passei a desfilar pelo CV, por entre meus detratores, de peito inflado feito um baiacu, em postura altiva, olhando-os de cima para baixo. Eles desviavam seus olhares. Lembro da cara de muitos deles até hoje : cabelos compridos, barbichinhas mal aparadas, óculos escuros do tipo John Lennon, bermudas jeans desfiadas, chinelões de dedo... enfim, a triste figura do bicho grilo. Ou, talvez, da bicha grilo. Porque só pode ser isso, só pode ser enrustimento. Só uma carência anal muito grande pode levar o sujeito a ficar "cuidando" do planeta, ou achar que pode "consertar" a cabeça de outrem, ou queimar jornais.
Com a repercussão negativa, as mesmas pessoas que haviam concordado com a publicação de suas histórias, deram para trás, falaram que de nada souberam antecipadamente. De uma hora para outra, todos queriam a cabeça do Azarão. E não era a da chapeleta.
A indignação acadêmica chegou às altas esferas administrativas do Departamento de Química. Um professor, muito do corno e oportunista, chegou a pedir para o chefe do departamento que, frente a tal grave delito, desapropriasse a sede do Cenequi, que fôssemos expulsos de nossas instalações. O que o escroto chifrudo queria era incorporar a sede do Cenequi aos seus laboratórios, para fazer suas pesquisas fajutas, pesquisas para inglês ver, que jamais são dadas à luz de alguma utilização prática, punhetas científicas.
Chegara a hora da verdade. O chefe do departamento, disseram-me, tinha lido um exemplar de O Pasquímico e pronunciado seu veredicto. Contaram-me que ele fora curto, grosso e irrefutável, como são os pronunciamentos dos gênios. Especialista em terras raras, e também ele uma raríssima figura, disse : Eu achei engraçado.
O manda-chuva da Química gostara de O Pasquímico, dera boas risadas com ele. Eu estava a salvo
Salvo engano, ele era formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), graduou-se na década de 70, anos de grande efervescência cultural no Rio de Janeiro, a época do famoso desbunde. Lembro de ter visto, certa vez, na sala dele, um cartaz do lendário grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do espetáculo Trate-me Leão. Do Asdrúbal, entre outros, surgiram Evandro Mesquita, líder da pioneira e inigualável Banda Blitz, e o humorista Luís Fernando Guimarães. O chefão sabia apreciar um bom material, quando via um.
Eu estava a salvo. Não escreveria mais O Pasquímico. Pedi demissão do meu cargo no Cenequi, que enfiassem o diretório acadêmico no cu. Na hora do aperto, não teve um filho da puta do Cenequi que ficou do meu lado.
Agora, reproduzirei O Pasquímico aqui no Marreta. Verão que não tem nada de mais, verão que foi tempestade em tampinha de garrafa, que são textos leves e curtos, despretensiosos, pueris até, feitos a toque de caixa, sem tempo para revisão ou qualquer requinte de redação. Esse prefácio, inclusive, é muito maior que o jornal inteiro. Tentarei reproduzi-lo letra a letra, vírgula a vírgula, mantendo, inclusive, os possíveis (e prováveis) erros de concordância. Uma única alteração será feita : omitirei os nomes dos envolvidos nas histórias, substituirei-os por suas iniciais. Éramos jovens à época; hoje, somos todos de meia idade, com filhos, esposas e esposos, amantes, profissões.
Reproduzirei O Pasquímico por dois motivos principais. Um que ele foi o embrião do A Marreta do Azarão, e outro que, neste ano, comemoro meus 25 anos de amizade com meu grande amigo Fernandão, as nossas bodas de prata. Em homenagem a esse tão duradouro relacionamento, republico O Pasquímico.
Do Fernandão, em retribuição, espero pelo anel.
Abaixo, O Pasquímico.
Abaixo, O Pasquímico.
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