Pequeno Conto Noturno (56)

Rubens encontra Calil. Melhor (pior) : não consegue evitar que Calil o veja, passar-lhe despercebido. Rubens, como já foi dito, tem uma capacidade sobre-humana de se tornar invisível, de voar abaixo dos radares das pessoas com quem cruza pelas ruas e não gostaria de ter. Menos do de Calil. Calil anula os poderes de invisibilidade de Rubens. Calil é a sua kryptonita.
Rubens bem que tentou. Quando viu Calil dobrar a esquina, a quase dois quarteirões de distância, enfurnou-se na loja de conveniência de um posto de combustíveis. Fizera-o tarde. Como sempre. Calil o tinha detectado. Coisa de minuto e meio, dois minutos, Calil estava ao lado dele, no balcão onde Rubens se sentara, de costas para a vitrine e para a rua.
- Rubão, meu velho! Quanto tempo, hein? - e Calil se senta no tamborete ao lado do de Rubens.
- Não o suficiente, Calil - Rubens acabando de sorver uma talagada de cerveja - não o suficiente... - outra talagada - e não me lembro de ter convidado você pra se sentar comigo. 
- Há! Há! Há! Esse é o velho Rubens de sempre, sempre se fazendo de durão, dando uma de grosseirão, só pra não demonstrar a emoção de rever um velho amigo.
- Acredite, Calil, você não iria achar nada bom se eu demonstrasse a real emoção quando lhe vejo. Além do quê, eu passaria um bom tempo na cadeia.
- Viu só, Rubão, a novidade? O Paulistânia, cara. O Paulistânia reabriu. Os velhos tempos voltaram, cara!
- Não, Calil, não voltaram porra nenhuma. O que voltou foi um prédio reformado, uma maquiagem de defunto, e que, por coincidência, ocupa o mesmo endereço e tem o mesmo nome que o Paulistânia; fiquei sabendo que nem é mais o Durval que toca o lugar, arrendou-o para alguém dessa nova geraçãozinha babaca de "rockeiros". Quanto aos velhos tempos, por que eles voltariam?
- Deixa de viadagem, filho da puta. Vamo lá, Rubão, vamo lá porra, amanhã, os velhos e bons sábados do Paulistânia, Rubão, lembra Rubão, lembra?, o ambiente tremia quando o velho Calil aqui aparecia.
- Eu tremo até hoje, Calil.
- Amanhã, Rubens? Paulistânia, umas onze e meia, meia-noite?
- Tá bom, Calil, de repente, pode ser bom.
- Bom? Bom pra caralho, Rubão. Quem sabe a gente não pega até umas vagabundas?
- É provável, Calil, é provável... Até amanhã, então - Rubens esvazia o que restava na lata.
- Ô, Rubão, a informação do Paulistânia não vale uma cerveja aqui pro seu velho camarada?
- A informação vale, mas ter que ir lá com você, anula o merecimento. Até, Calil.
Rubens sai pela grande porta de vidro da loja e Calil fica lá, no balcão, já a entabular uma conversa com a atendente. Ele fará de tudo e por onde para tomar uma ou duas cervejas sem pagar.
Rubens pretendia chegar ao seu apartamento e se jogar na cama, apagar, mas o encontro com Calil o faz ir à geladeira, pegar um litrão de cerveja a hibernar no congelador e se sentar com ele na sacada.
Rubens não irá ao Paulistânia. Calil que o espere. Nunca teve a intenção de ir. Calil que se foda. Só concordara  com Calil porque era a maneira mais rápida de se livrar dele.
Rubens não gosta dessas revisitas ao passado, desses túneis do tempo, embora, às vezes, e sempre com remordimentos posteriores, não consiga resistir a eles. Desta vez, contudo, não haverá tentação à qual resistir, ainda mais com Calil na jogada.
Rubens sabe que chegaria ao novo Paulistânia a procurar pelo antigo, ou, ao menos, a tentar reconhecer traços do antigo na nova versão - e o Paulistânia não estaria lá.
Sabe que entraria a procurar pelos velhos frequentadores, pelo velho e carcomido balcão de madeira onde se tomava cerveja em pé e do qual emanava um nauseabundo cheiro de cerveja azeda, e até pela velha e ardida neblina da fumaça azulada dos cigarros - e os velhos frequentadores não estariam lá; o balcão, agora provavelmente de polido e fulgurante granito, impermeável à cerveja e às desilusões e aos choros nele derramados; a fumaça dos cigarros, banida por uma lei quase que nazista contra os fumantes.
Rubens sabe que entraria no novo Paulistânia com os ouvidos a buscar pelas velhas bandas, pelos velhos rocks, pelo velho brado em uníssono de "Toca Raul" - salve, salve e descanse em paz (se puder), Grillo Vergueiro - e nenhum deles estaria lá.
Parece até, pensa Rubens, com a cerveja querendo lhe voltar pelo nariz, a música do Raul, O Dia em Que a Terra Parou. O velho rockeiro não saiu pra festejar, pois sabia o Paulistânia também não estava lá.
Tomado por uma puta nostalgia, Rubens pega outro litrão na geladeira, leva o toca-CD para a sacada e põe a discografia do Raul para tocar, aleatoriamente.
(convence as paredes do quarto e dorme tranquilo, sabendo, no fundo do peito, que não era nada daquilo...)
Sabe que chegaria ao novo Paulistânia afinzaço de cantar as velhas e rechonchudas pichorras - e nem elas, que nunca deram mesmo pra ele, estariam lá.
(oh! oh! seu moço do disco voador me leve com você pra onde você for, oh! oh! seu moço, mas não me deixe aqui, enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí) 
Sabe que iria direto ao balcão para ouvir os resmungos e as reclamações do velho Durval - e ele não estaria lá.
O velho Paulistânia, o velho balcão, os velhos frequentadores, as velhas bandas, os velhos rocks, o velho Grillo, as velhas e apetitosas pichorras, o velho rabugento Durval... Nenhuma dessas ausências no novo Paulistânia seriam insuperáveis; tristes, sim, pra caralho, mas contornáveis. Nada que três ou quatro latas ou doses a mais não mitigassem. Só pretextos, todas elas.
Sobretudo, Rubens não vai ao novo Paulistânia - nunca teve a intenção de, só concordou para despachar Calil - porque sabe que entraria no novo Paulistânia a procurar pelo velho Rubens, pelos seus velhos olhos acesos e insones, pela sua velha alma instigada, pela sua velha vontade de cantar - e o velho Rubens não estaria lá. Só o Rubens velho.
(vou sentir, que a minha dor no peito, que eu escondi direito agora vai surgir)
Rubens sente um gosto salgado e fluido a lhe descer pela boca. Chorara. Quando começara a? Ainda chorava? Então, como sempre acontece nessas ocasiões, o pássaro azul que Rubens traz cativo e trancafiado eviscera as grades do peito e esvoaça ao redor dele. Dá uma, duas, três, quatro voltas ao redor da cabeça de Rubens e pousa em seu ombro esquerdo, feito o corvo de Poe. E, do ombro, dos umbrais de Rubens, pergunta-lhe : mas eu não choro, e tu?
(quando quer chorar, vai ao banheiro. Pedro, as coisas não são bem assim)

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