A Casa é Sua

Assisti - por acaso, como tudo ao que eu assisto ou deixo de, por acaso, pois não tenho mais tempo para planejamentos, apenas para o fortuito, e ele, às vezes, favorece-me - ao espetáculo de Maria Bethânia, Cartas de Amor, transmitido pelo canal Brasil.
Sim, espetáculo! Chico Buarque dá show. Caetano Veloso dá show. Bandas de rock dão shows. Sertanejos universitários dão... dão... sei lá... acho que a bunda. Bethânia dá espetáculos! Se alguém ainda não assistiu a Cartas de Amor, veja se há alguma reprise prevista na programação do canal Brasil, compre ou baixe o DVD, mas dê um jeito de assistir.
Há as músicas clássicas - Negue, Grito de Alerta, Mensagem, Fera Ferida - e muitas novas, ou que eu  pelo menos não conhecia. Um belo exemplo é Orgulho, de Roque Ferreira, uma bela duma canção de corno que, em breve, poderá figurar aqui na seção Todo Castigo Pra Corno é Pouco, depois que eu publicar uma música de corna, Bodas de Prata, gentilmente enviada por mim pelo Jotabê, do Blogson Crusoe.
Bethânia interpreta também, e ela é o motivo dessa postagem, a canção A Casa é Sua, de Arnaldo Antunes. Uma canção de que gosto muito, mas que nunca lhe tinha percebido o gênero : é música de fossa, de corno, até. É que Arnaldo Antunes constrói a coisa tão bem construída, com uma melodia tão alegre, que a gente nem se toca de que é música de dor de cotovelo. Uma vez na voz teatral e dramática de Bethânia, a verdade se revela. O cara tá lá, com a casa toda pronta e arrumada, esperando a mulher chegar e ela não chega. Onde estará? Distraída pelas vitrines de uma loja de sapatos de um shopping? Absorta a fazer as unhas, pés, mãos e cabelos num salão de beleza? Alheia a correr na esteira da academia, a levar encoxada do personal trainer? Dando pra outro?
A casa é sua,  por que não chega logo? Pergunta o ex-titã.
Música de fossa, sim; quiçá de corno, um corno mais de bem com a vida, mais zen, mas corno. Só mesmo a Bethânia para me fazer perceber isso.
E me fez lembrar - sem querer compará-lo ao de Arnaldo Antunes quanto à forma ou à qualidade, mas tão somente quanto à temática - de um texto que escrevi em 2000 ou 2001 (de qualquer forma, na virada do século, alvorada voraz ) por ocasião de um belo de um pé na bunda que levei. 
Reproduzo as duas abaixo, a de Antunes e depois a minha, ainda sem título, como grande parte de meus escritos. Principalmente, quando se trata de poemas, poesias etc, tenho imensa dificuldade de titulá-los. 
A Casa é Sua
(Arnaldo Antunes)
Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar
Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar

Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar

Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
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Sem Título
Fosse só eu, seria fácil. 
Mas é a fechadura que enrosca 
Como a impedir minha entrada solitária, 
É o piso acarpetado a bombardear minha alergia com seus ácaros, 
Como a perguntar o que está faltando. 
É a torneira a pingar incansavelmente 
Como a dizer: “Por quê? Por quê? Por quê?”. 
É a roupa que se recusa a secar no varal, 
É o sofá que insiste em não se moldar ao meu corpo. 
É o chão que se fecha em ser limpo, 
É o desinfetante que se aliou aos germens do banheiro.
 
Fosse só eu, seria fácil. 
Mas é o ar que não mais se renova, 
Embora eu faça janelas cada vez maiores. 
É o espelho que não mais consegue mostrar um sorriso em meus olhos. 
É o tempo que não mais transcorre, 
Embora haja baterias cada vez mais potentes a habitar meus relógios. 
É o chuveiro a me racionar seu abraço tépido, 
É o pensamento ao meu redor em letargia, 
É a televisão que se nega a me fazer companhia, 
É tudo em estado permanente de hibernação.

Fosse só eu, seria fácil. 
Mas é a geladeira que não gela, 
O filtro que não purifica, 
O colchão que se comporta como fosse imã meu de mesmo pólo. 
O alimento que não nutre nem dá mais prazer. 
O sono que não mais liberta, 
Os livros que nada mais revelam, 
A noite que não traz mais a esperança em seu manto, 
A tristeza que não encontra refúgio no pranto, 
A imaginação tola que a tudo piora e desespera. 
A roupa em sua aspereza a me lixar a pele 
(E nu, a minha própria nudez me exaspera), 
É o sufocante excesso de espaço. 

Fosse só eu, seria fácil... 
Mas é a casa toda que sente 
E lamenta a sua falta.

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