E o IPVA, Jesus? Valha-me Deus!

Durante os anos de 1998 e 1999, lecionei em uma escola cujo secretário-chefe atendia pelo nome de Jesus. Nome de registro, mesmo, de batismo, batismo que fora realizado, segundo o próprio Jesus, por um padre de nome João Batista. Fato ou factoide - o tal padre João Batista -, ninguém nunca ousou duvidar publicamente na frente de Jesus, pois Jesus, como alguns me alertaram, quando tive que começar a levar meus documentos para ele abrir minha Portaria de serviço, era tido como ranzinza e rabugento.
E Jesus realmente o era, como bem pude constatar em meus primeiros contatos com ele. Mas não lhe desgostei nem lhe tomei mágoa ou pirraça. Antes pelo contrário : identifiquei-me com o velho e sistemático burocrata que cuidava da parte administrativa da escola, que começara sua carreira na época em que secretário era chamado de guarda-livros.
E aproveito para sair em defesa da classe : o ranzinza, o rabugento, ao contrário do que supõem o populacho, a patuleia e a choldra ignóbil, não é um cara mal-humorado, amargo, pessimista e sempre de mal com a vida. Nada disso. O ranzinza é tão somente um sujeito seletivo, que não se dá com qualquer um, que testa se você é digno de sua amizade e confiança. A chatice e a implicância do ranzinza - e isso o ranzinza é, chato e implicante - são provas de resistência que ele lhe coloca, são obstáculos a serem galgados para que se chegue até ele. Se a pessoa não arregar nem amarelar ao longo do teste de sobrevivência, encarar e superar os árduos obstáculos, o ranzinza muda de figura, passa a ser uma pessoa afável e acessível, um amigão.
Fez-me assinar milhares de papéis, reconhecer dezenas de firmas, levar-lhe cópias autenticadas de calhamaços de documentos. E nunca pedidos de uma só tacada. A cada vez que eu entregava uma remessa em seu guichê, outra prova da gincana de Jesus me era passada, com grau crescente de dificuldade. Parecia mesmo que Jesus ficava me pedindo esse, aquele e aqueloutro documentos até que encontrasse um que eu não possuísse. Certidão de nascimento, Tá aqui, seo Jesus, RG, cic, certificado de reservista e título de eleitor, Estão aqui, seo Jesus, Histórico escolar e declaração de conclusão da quarta e oitava série e do terceiro colegial, Estão aqui, seo Jesus, Diploma superior reconhecido pelo MEC, Aqui, seo Jesus, Curso de datilografia, Aqui, seo Jesus, Carteira de vacinação, Aqui, seo Jesus, Carteira de vacinação do cachorro, Mas eu nem tenho cachorro, seo Jesus, Isso não é problema meu.
Foram bem uns 15 dias de escrutínio e de provação, os quais eu levei na boa, com rara paciência e inesperado bom humor. Nunca dirigi a Jesus única palavra atravessada ou de insolência. Por fim, Jesus sorriu-me. Sua Portaria está aberta, disse-me, e sai publicada em dois dias no Diário Oficial.
Eu fora aprovado. Daí em diante, Jesus virou meu camarada. Eu passara em seu teste. Submeti-me aos seus rituais. Respeitei o seu território. Pedi licença para adentrar em seu reino.
Como é de regra com os ranzinzas, Jesus nada tinha de azedume; pelo contrário, era bem-humorado pra caralho. Claro que não aquele humor idiota, engraçadinho e inócuo; o humor do ranzinza é irônico, sacana, sarcástico e sardônico, aquele humor que vai no feridão.
Jesus era espirituosíssimo. Tinha uma Belinona velha, uma Belina II que fora verde-metálica um dia, e no vidro traseiro do carro, Jesus colara um adesivo automotivo muito em moda na época : "Propriedade de Jesus".
Pãããããta que o pariu!!!! E era mesmo! Aquela Belina velha era, incontestavelmente, Propriedade de Jesus. Adquirida, paga e mantida com o trabalho, a faina, o suor, enfim, com a via crucis cotidiana daquele Jesus. Vi o colante por ocasião de uma carona que peguei com Jesus e não pude conter a gargalhada. Jesus gargalhou comigo. Já dentro do carro, confortavelmente instalado no banco do passageiro, não pude deixar de me lembrar de outro adesivo também em voga na época : "Dirigido por mim, guiado por Deus". Mentalmente, elaborei o meu próprio : "Não sei dirigir, mas Jesus pego carona com Jesus".
Talvez inspirado pelos calvários desses Jesuses anônimos, o deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ), um dos investigados no esquema de propina do Lava Jato, também aderiu aos adesivos "Propriedade de Jesus" em seus carros. Mas Cunha foi além : não só adesivou seus carros, pô-los legalmente em nome do Nazareno.
Cunha registrou seu carro mais caro, um Porsche Cayenne S, de 2013, avaliado em R$ 429.000, em nome de sua empresa, a Jesus.com, cujo objetivo, teoricamente, é fazer propagandas e programas de rádio. O deputado transformou Jesus em uma empresa? Sim, e até aí nenhuma novidade, muitos já fizeram o mesmo antes e continuam e continuarão a fazer depois, a Igreja Católica foi a primeira. E o Porsche (ou a Porsche?) é apenas uma parte da frota de Cunha. O deputado ungido por deus tem ainda um Ford Edge V6 e um Ford Fusion registrados em nome da mesma empresa. Há ainda cinco veículos vinculados a outra empresa e à mulher do deputado, a jornalista Cláudia Cruz. O patrimônio automotivo do deputado, ops, de Jesus, é de R$ 940.000.
Pãããããta que o pariu, Jesus!!!! E o IPVA, meu velho? Quem é que paga o IPVA dos carros de Jesus? Janeirão se aproxima, Jesus. Brabo e famélico por tributos. Só recorrendo ao Pai, Jesus. Eduardo Cunha terceirizou o IPVA. Deus lhe pague, ops, Jesus lhe pague.
E não é só com o IPVA que Jesus sofre por esse Brasilzão afora. Há uns dois ou três anos, viajei pelo chamado Circuito das Águas Paulista, Serra Negra, Lindóia, Águas de Lindóia, Amparo etc. E à entrada de uma dessas cidades, Lindóia se não me trai a memória, uma grande placa numa rotatória : "Essa cidade é do Senhor Jesus". Pããããta que o pariu!!! Com quanto Jesus não "morre" só de IPTU? E nem é só o IPTU, tem o habite-se, o recolhimento do INSS, o cartório de notas, o cartório de registros, os calotes do inquilinato etc. Tá fudido, Jesus!
Só Jesus salva, irmão. E quem é que salva Jesus? Da primeira vez, Jesus veio para redimir a humanidade de seus pecados. Da segunda, pelo visto, virá para saldar suas dívidas, seus tributos em atraso. Jesus voltará, irmão. Voltará? Eu não voltaria. Nem a pau!
Fonte : Paulopes

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5 Comentários

  1. Muito bom, só pra constar meu pai tb chama Jesus e adora comprar/ganhar/colecionar e usar td tipo de quinquilharia do xará com mais merchandising kkkkk
    "J"

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    1. Então, com certeza, ele conhece o Guaraná Jesus :
      http://amarretadoazarao.blogspot.com.br/2014/06/guarana-jesus-salvacao-tambem-na-versao.html

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  2. Conhece ô, já tomei mto inclusive, mas confesso que era mais por causa da cor. :p
    "J"

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  3. Não é o caso de discutir se Deus existe ou não, nem se Jesus é seu filho. Tem gente que crê nisso, tem quem não crê. Tudo bem. O que me incomoda é que há uma transcrição (livre, diga-se) das dicas e ensinamentos de um Jesus histórico (para simplificar, tomemos sua existência terrena como verdadeira. Senão, será como discutir se Shakespeare existiu ou não). Pois bem, aparentemente está todo mundo cagando para isso, pois o que vale são as idiotices que se vê escritas nas placas, paredes, folhetos, brindes e todo tipo de quinquilharias, nas frases feitas, nas falas robotizadas dos “fieis”, na pregação disparatada dos diversos pastores (padres incluídos), mais interessados na forma que na essência. Isso é um porre total. Dá para imaginar gente como o Eduardo Cunha declarar-se evangélico? Só se for para correr a sacolinha, como dizia o Tim Tones, personagem do Chico Anísio. Você está mais que cerrto de gozar essas maluquices.

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    1. Realmente, não é o caso de discutir a real ou a suposta existência de Cristo nem o lugar que ele ocupa na hierarquia divina, digamos assim. A questão é que os ensinamentos que ele pregou (e aqui não há nenhum trocadilho com ele ter sido pregado), tenham sido eles ditos por Cristo ou não, em nenhum momento, justificam ou aconselham essa ladroagem que andamos a ver, essa devassidão moral, antes as antigas orgias romanas do que essa orgia com nosso dinheiro. Pelos menos, nas orgias romanas eram os cus deles que eram postos na reta, e não o nosso.
      Bela lembrança, o ruivo Tim Tones.

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