As Garrafas de Náufrago de Yrina

Yrina, em sua ilha, vivia do artesanato e do comércio barato de garrafas de náufrago. Confeccionava-as às mancheias. Embora sem pedidos formais de encomenda, Yrina as despachava pelo incerto e aleatório, porém, confiável, SEDEX do mar. Crédula na honestidade das pessoas que as recebessem, segura de que lhe retribuíssem, se não em espécie, ao menos em víveres, tão escassos e trabalhosos em sua ilha.
Nunca recebeu um centavo por suas garrafas de náufrago. Decepcionou-se. Enganara-se, desde o começo. Não quanto à desonestidade das pessoas - motivo ao qual atribuía o calote dos que recebiam parte de sua alma arrolhada -, que essa é patente e irrevogável no ser humano. Enganara-se quanto ao interesse, quanto à demanda por seu produto - poderíamos dizer até, por sua arte. Sim, as garrafas de Yrina eram feitas com os mesmos apuro e esmero - se não maiores - que aquelas garrafas que se preenchem com paisagens praianas em colorida areia monazítica.
Quem, livre, se interessa por gênios aprisionados em garrafas de rota incerta? Quem se interessa por garrafas de náufrago? Outros náufrago, talvez? Se muito. E com o que ele retribuiria a garrafa de Yrina? Com outra garrafa de náufrago? Alguma vez, Yrina recebera em sua praia uma delas?
Como todo artista incompreendido, Yrina resolveu deixar temporariamente de lado o seu ofício de artesã, tinha de cuidar da vida. Com artes de castor, represou um pequeno regato, modelou sua moringa de água potável e fresca; trançou, hábil aranha, sua morada de folhas de coqueiro; cultivou, Ceres caiçara, seu pomar de bananas, mamões, goiabas, laranjas, a sua fruta-pão de cada dia; sulcou, construtora romana de aquedutos, um canal lacrimal do mar até um pequeno poço que cavara, construiu seu viveiro de peixes e mariscos; Dr. Moreau de saias, tratou de povoar sua ilha, não com melões de nome Wilson, que seria idiota, retardado, escroto : hollywoodiano demais. Mas sim dando vida ao seu baralho de cartas, todos os naipes a lhe servir de criados e o Curinga, de companhia para o café.
Mas, esperançosa, guardara uma última garrafa de náufrago - a sua obra-prima, "A" garrafa; com pungente mensagem a envelhecer e a depurar -, para o dia propício de lançá-la ao mar, quando, por fim, descobrisse o endereço e o CEP do acaso.
Porém, ou alguma vaga vagabunda lambera a garrafa de seu esconderijo, ou alguma gaivota rapinante de sonhos a levara para dar de comer aos seus filhotes, ou o Curinga a tinha esvaziado, embriagado-se de seu conteúdo púrpura e a enterrado fundo, para manter Yrina só para si.
Há dias, Yrina procura pela garrafa. Realizou varredura de tomógrafo na ilha : quebrou sua moringa de água potável, implodiu sua cabana, erradicou seu pomar, esvaziou seu pesque-pague, torturou para obter confissão e matou cada um dos habitantes de seu baralho.
Nada. Nada de sua última garrafa de náufrago. Nem mesmo uma última garrafa de whisky. Ou de rum. 
Agora : reconstruir a ilha.
"Mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar
Meu coração tropical partirá esse gelo e irá
Como as garrafas de náufrago e as rosas partindo o ar"

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1 Comentários

  1. Sem dúvida você me fez uma inveja do caralho agora. Muito bom mesmo.
    "J"

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