Pequeno Conto Noturno (53)

Três e tanto da madrugada. Rubens aguarda que o operador de caixa da farmácia, que a essas horas vazias faz também as vezes de balconista, volte ao seu posto para lhe cobrar sobre o envelope de Engov, cujos comprimidos, ao chegar Rubens em casa, serão deglutidos com um bom macerado de boldo, de folhas provenientes da extensa horta farmacopeica de Rubens, um único vaso ao canto da sacada. E Rubens se lembra de que o boldo está em flor, espigas de flores roxas, em forma de tamancos holandeses e com estames amarelos; Rubens não se comove com a miséria humana, tampouco se impressiona com seus grandes feitos, mas é capaz de, e lhe apraz, admirar por horas uma inflorescência de boldo.
Engov e boldo, Rubens já ouviu deles serem só placebos, agentes sem nenhuma eficácia cientificamente comprovada. Só placebo?, pensa Rubens. Só? O efeito placebo é a prevalência da mente - perfeita e subsubsubutilizada - sobre o corpo - tosco, falho, podre e superestimado. Placebos, o Engov e o boldo? Rubens torce para que sim. Um remédio de "eficácia cientificamente comprovada" é apenas um remendo para o corpo, é costura nova em fazenda velha e esgarçada; o placebo é  um aditivo, um catalisador para a mente (só placebo?), e se vendido a preço barato, feito o Engov, ou obtido a custo nenhum, feito o boldo, tanto mais agrada a Rubens.
O operador de caixa chega, e também um homem atrás de Rubens, a se fazer sentir sem se anunciar; ao menos pelos sentidos sempre em alerta e paranoicos de animal noturno de Rubens. Cheiro de casa antiga, porém, bem zelada; de biblioteca secular, porém, bem espanada do pó e reforçada diariamente em seus escudos de querosene e naftalina, uns vapores de parafina e um quê de Leite de Colônia, aquele do frasco verde.
A mão do homem se coloca em paralelo à de Rubens na esteira do caixa, em concha, ocultando e deixando entrever, por um vão entre os dedos médio e indicador, um pacote de preservativos e uma nota de 20 reais, bem na inscrição Deus Seja Louvado.
- Pode passar isso para mim, meu filho? - disse o dono da mão, maior que a de Rubens, bem cuidada, unhas bem aparadas e lixadas, cobertas com base, cutículas feitas e nós entrefalanges levemente mais grossos e rústicos que o restante, lembranças indeléveis, talvez, de um passado de labuta pesada.
Rubens olha para o cara. Um senhor de seus 60 anos, semblante respeitável, inspirador de confiança, cabelos de um gris azulado, penteados para trás, fios mantidos no lugar por brilhantina ou Trim, rosto bem escanhoado. Como a justificar e a reforçar o pedido feito a Rubens, ele desce o zíper de seu casaco e revela um colarinho clerical, um padre.
São três e porrada da matina, pensa Rubens. Na farmácia, só ele, o padre e o caixa/balconista, todos homens, qual seria o impedimento do próprio padre pagar pelas camisinhas? Além do mais, o casaco de camurça do padre, fechado até o pescoço, ocultava totalmente o colarinho clerical, e não havia outra forma de identificá-lo ou reconhecê-lo como um sacerdote. Poderia passar tranquilamente pelo caixa com seu disfarce, mas preferiu revelá-lo a Rubens e contar com que ele lhe fizesse um favor. Poderia, inclusive, ter ido à farmácia sem a veste sacerdotal por baixo do casaco. No entanto, saiu caracterizado e disfarçado e revelou a escamoteação por vontade própria.
Algo estava muito errado nesse fim de noite, Rubens pressente. Mas, enfim, quando é que algo dava certo em suas madrugadas?
Rubens passa o seu Engov e o pacote de camisinhas do padre. Já fora da farmácia, entrega-o para o padre juntamente com o troco.
- Muito grato, filho, poucos teriam feito esse favor.
- E deus não está vendo, padre?
- Claro que sim, filho, mas Deus não liga para isso, não, quem proíbe é a religião, que é coisa dos homens, o Papa. E acredito também que a madrugada é a hora que Deus reservou para que as pessoas sejam como de fato são, a maioria prefere dormir, mostrando que vieram ao mundo apenas para engrossar o rebanho, enquanto que outros, como nós, meu filho, ficamos por aí, procurando alguma coisa que faça sentido.
Rubens olha para o padre com certa simpatia pelas suas opiniões.
- Não concorda, meu filho?
- Eu já acho que a madrugada é a hora que deus reserva para ser o que de fato ele é, ou seja, para parar de fingir que é deus.
- É um descrente, filho? Eu poderia retribuir a gentileza que me fez na farmácia lhe pagando um café? Cairia bem a essa hora.
Definitivamente, alguma coisa está mesmo muito errada, conclui Rubens. Mas sempre não está? E quem é Rubens para contrariar as probabilidades?
Uma cafeteria de esquina. Um café expresso para Rubens, um com leite para o padre. Rubens pega um Engov e o engole com o primeiro gole de café.
- Prevendo um amanhecer difícil, meu filho?
- Um dos comuns.
- Deve ter um monte de perguntas sobre mim, não é? Um padre, às três da manhã na rua, pedindo que lhe comprem preservativos...
- Nenhuma das perguntas que temos são sobre os outros, padre, todas são sobre nós mesmos, e se o senhor tem respostas convincentes para as suas, por mim tá tudo certo.
- Ora, ora, um sábio... o bom Deus deu-me a companhia de um sábio nesse fim de noite.
- De um bêbado falastrão. Deus está lhe vendendo bêbado por sábio, gato por lebre, existência por vida, como ele sempre faz.
- Não crê mesmo em Deus, né, meu filho? Ou, pelo menos, tem uma visão muito distorcida Dele, do que Ele é e de como Ele opera.
- Não creio, mesmo.
- Como podemos, então, estar aqui, meu filho, a falar e discutir sobre algo que não existe?
- Porque é o que nós, humanos, fazemos de melhor, falar do que não existe. Ao invés de nos ajustarmos ao que é real e bem usufruirmos dele, inventamos imaginários mundos que nos seriam melhores, mais acolhedores e aprazíveis. Admito que, nesse caso, um bondoso deus que a tudo provê, cuida, protege, conforta e conduz a humanidade pela mão feito a uma criança mimada e incapaz, faria muito sentido, viria bem a calhar. Contudo, padre, basta olhar em volta, o mundo não tem nada de acolhedor nem de aprazível para a grande maioria, logo...
-  ...logo, Deus não existe, é isso?
- Ou o senhor, padre, tem uma visão muito distorcida Dele, do que Ele é e de como Ele opera.
O padre ri.
- Você trabalha com o quê, filho?
- Defina trabalho, padre.
- Trabalho, ora, trabalho. 
-Então, eu defino. Trabalho, fisicamente falando, é o resultado de uma força que, aplicada em determinada direção e sentido, promove o deslocamento do objeto de sua aplicação. Transpondo esse conceito para o que chamamos de profissão, seria um esforço que, aplicado e direcionado a um certo objetivo, causasse uma mudança, preferencialmente para melhor, no objeto de sua aplicação. Assim posto, não. Não trabalho. Meu esforço não opera nenhum deslocamento de uma situação inicial, tampouco alguma mudança.
- Entendo a definição, lembro dela de meus tempos de colégio interno, mas não a sua conclusão e menos ainda isso me dá alguma indicação de sua profissão.
- Imagine-se, padre, a rezar uma longa missa para uma plateia composta unicamente por ateus, isto é, por pessoas totalmente desinteressadas e indiferentes ao que o senhor professa, e que essas mesmas pessoas, todos os dias, fossem obrigadas a ouvir o seu sermão, e o senhor, obrigado igualmente a recitar suas ladainhas sempre para essas mesmas pessoas. Imagine o senhor chegar à missa do dia seguinte e, por exemplo, ao começar a falar de uma das parábolas de Cristo, levantarem a mão e perguntarem quem foi Cristo, sendo que o senhor falou dele, da mesma parábola, no dia anterior, e no anterior, e no anterior. Imagine o senhor acordar todo o santo dia sabendo que, por mais que bem reze sua missa, sempre, no dia seguinte, no seguinte ao seguinte e ad infinitum, todos continuarão sem saber quem foi Cristo, como se o senhor nunca dele houvesse dito.
- Seria o inferno, meu filho!
- Pois isso, padre, é o que, hoje em dia, chamam de lecionar.
O padre ri, de novo.
- Meu filho, a noite se finda, não gostaria de continuar com nossa agradável e quase herética conversa lá na casa paroquial? Poderíamos ficar mais à vontade, tenho um bom vinho na adega...
Eis a coisa errada que o instinto de bicho noturno de Rubens pressentira desde o começo.
- É o seguinte, padre, eu sou um cara sem crenças, logo, sem preconceitos ululantes, mas tenho minhas preferências.
- Novas preferências podem surgir, meu filho, e mesmo se sobreporem às antigas.
Noite perdida, ressaca das brabas já raiando; no inferno, Rubens resolve fazer o jogo do capeta.
- E rolaria, padre, nessa nossa brincadeira, uma freirinha recém-ordenada, ou uma novicinha tenra, só para arejar um pouco o ambiente?
- Hoje, com certeza, não, meu filho. Mas o futuro a Deus pertence. Tenha fé e Ele proverá.
Rubens gargalha. O padre era um grande dum filho da puta. Rubens gostou dele. Mas não o suficiente para lhe comer o toba. A tal altura da vida, pensa Rubens, cu de padre é item de que não preciso em meu currículo.
- Pois quando deus nos prover da novicinha, o senhor me avisa, tá?
Imediatamente, um celular salta às mãos do padre.
- Qual seu celular, meu filho?
- Não tenho celular, padre.
- Facebook?
- Não tenho.
- WhatsApp?
- Também não tenho. Isso é tudo coisa do capeta, padre.
- E como faço para lhe contatar, meu filho? - o padre muito louco, levando à sério a sacanagem de Rubens.
- Pergunte ao seu deus, ele sabe tudo, saberá lhe dizer onde e como me encontrar.
Rubens levanta, vai ao balcão, olha para a geladeira das cervejas, cuida de escolher a mais cara e pede ao balconista.
- Põe na conta do padre ali.
Abre a long neck, dá uma boa talagada. Do balcão, ergue a garrafa em direção ao padre, um brinde e um tchau.
- Deus lhe pague, padre.
E volta para a madrugada.

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3 Comentários

  1. E tudo isso tinha mesmo que se passar três da manhã rsrsrs, a hora do capeta (risos). Muito bom o diálogo.
    "J"

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  2. Pois é, Consultor, muito bom o seu texto (como aliás, as consultas). Meio sacana, mas nada que me deixe incomodado. Para mim, a frase do padre pregando para uma igreja cheia de ateus FOI a melhor sacada. Aconteceu, um tiro na mosca. Não ERA para ser diferente, porque você é sempre ou continuadamente um bom escritor. Meio bocageano, mas sempre bom de ler.

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    1. Tá vendo só? Nos casos, o foi e o era tem usos bem claros, mas às vezes são muito confusos. Depois de ter "falado" com você sobre o é ou o for, fui me meter a ver um pouco soube os tais pretéritos perfeitos e imperfeitos, e a coisa realmente não é pra qualquer um. Se acertamos seus usos na maioria das vezes, acho que é por pura sorte, ou por bons instintos.

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