Pequeno Conto Noturno (44)

Se Rubens já não estivesse precisando de uma bebida, estaria convulsionando por uma agora, depois de voltar do mercado, onde foi comprá-la.
Supermercados são muito práticos, porém, sempre cheios de gente. E Rubens tem milhares de ressalvas e reservas contra pessoas. A todos os defeitos das gentes, Rubens poderia relevar, passar por cima, fazer vistas grossas, simplesmente fechar os olhos e tapar o nariz ao passar por elas, mas um se faz  imperdoável, faz com que a boa vontade de Rubens para com os outros se esvaneça : pessoas fazem Rubens perder tempo, pessoas fazem-no gastar seu tempo com elas, por causa delas, tempo que ele quer/precisa urgentemente para si. Pessoas estão sempre atravessando e atravancando seu caminho, separando-o do momento de que mais gosta e pelo qual mais anseia em seu dia, estar unicamente consigo.
Feito a gorda à sua frente na fila do caixa do mercado. Gorda, vestida como se fosse uma gostosa, parda, cabelo alisado tingido de ruivo, o salmo 23 tatuado nas costas à altura das omoplatas, a digitar rapidamente na tela de seu celular como quem tocava uma siririca e a rir de forma escandalosa a cada resposta das mensagens que enviava, e ao rir, de perfil que estava para Rubens, revelava falhas nas arcadas dentárias superior e inferior, vãos negros onde há não muito tempo, calcula Rubens, a moça não teria sequer 30 anos, existiram dois ou três dentes molares.
A compra dela nem foi o problema, passou rápido pelo caixa, pouco itens, umas barras de cereal light, uma bandejinha de legumes "orgânicos" e uns potes de iogurte grego. Categorias de produtos, raciocinou Rubens, compradas por dois tipos de gente, pelas magras, que não precisam daquilo, e pelas gordas, nas quais aquilo não surtirá o menor efeito, não fará a menor diferença. Essas são as sólidas bases da economia mundial, concluiu Rubens, vender produtos que são desnecessários a uma parcela da população e ineficientes à outra. De alguma forma, todos pensam que precisam deles, que suas vidas terão ganhos absurdos de qualidade.
Mas mal Rubens colocara sua compra na esteira rolante do caixa, a crer que logo estaria em casa, livre daquilo, e a gorda anunciou que iria querer recarga para o seu celular. O celular da gorda tinha três chips, um de cada operadora. A gorda, claro, botou recarga nos três. Rubens, então, descobriu o porquê do nome "operadoras" de celular. São literalmente operadoras, cirurgiãs, neurocirurgiãs, e sua especialidade : lobotomia.
Eis aí, pensou Rubens, o retrato photoshopado da atual classe média emergente brasileira, a chamada classe C : obesa, pardacenta, vaidades de gosto duvidoso acima de qualquer esboço de personalidade, evangélica-ostentação e com mais chips no celular que dentes na boca. Rubens sentiu ganas só de pensar no tempo que a gorda o fez perder. Rubens rogou intimamente a si mesmo para que a bebedeira e o desespero próprio das más madrugadas nunca o levassem a meter a rola em algo parecido com ela.
E antes da gorda, o rapazinho loiro, a trajar camiseta verde com o nome da universidade que frequentava e da carreira que cursava, o típico calouro universitário. Óculos de aros acrílicos roxos, a fazer caras de sensível afetado, aquele arzinho superior de quem está sempre a farejar um peido, cabelo com luzes, lentes de contato verdes e nenhum, absolutamente, nenhum livro nas mãos.
Fez a moça do caixa dividir o débito de vinte e poucos reais entre dois cartões de crédito universitário e um tanto em dinheiro. Nem a moça do caixa - provavelmente possuidora, malemal, do ensino fundamental - nem o rapazinho sensível - orgulhoso e altivo ingressante da Academia - sabiam fazer as contas direito. Demoraram mais que a recarga dos três chips do celular da gorda.
Eis aí, pensou Rubens, a nova elite intelectual a despontar no país, universitários que nunca estudaram na vida, filhos não do esforço e da disciplina, sim de facilitações governamentais, cotas para escola pública, Enems, Prounis e Sisus da vida. Semiletrados com diploma superior são a nova meta governamental para a educação do século XXI. Rubens amaldiçoou o rapazola pelo tempo que o fez perder. E o rapazinho finalmente saiu, todo lépido e faceiro, com seu passinho de quem não quer peidar. Rubens rogou intimamente a si mesmo para que a bebedeira e o desespero próprio das más madrugadas nunca o levassem a meter a rola em algo parecido com aquilo. Nem no rapazinho nem na moça do caixa. Se bem que a moça do caixa... até que dava para comer sem beijar.
Chegada a sua vez, Rubens não deu trabalho algum à caixa, não perdeu seu tempo, não a fez perder o dela e nem ao das pessoas que o sucediam na fila : um fardo de cerveja - doze latões -, e pagou em espécie, que dinheiro vivo, ao contrário do que "pensa" o populacho, é bem mais prático, não precisa de senha.
Rubens, finalmente, entra em seu apartamento. No chão, um bilhete que alguém fez escorregar por debaixo da porta : "Rubens, liga pra mim, não vai o usar o celular que te dei? Ofélia."
Ofélia era boa buceta. Boa de verdade. Das que encharcam fácil, não dão nenhum trabalho. E é assim que tem que ser, pensa Rubens. Ele bota o seu pau em riste, a mulher, a xana em mingau, cada um cumpre a parte que lhe cabe e tudo sai e acaba bem. Ofélia mantém também a mata nativa, prima por virilha e vulva sustentáveis.
Mas bucetas, por melhor que sejam, e elas o são, também gastam muito do tempo de Rubens, mais do que o tempo útil de 20, 30 ou 40 minutos que ele passa dentro delas. E hoje Rubens quer o tempo só para si.
Sim, lembra-se Rubens, Ofélia dera-lhe um telefone celular, há uns 10 dias. Há coisa de pouco mais de um ano, Rubens esquecera de pagar a conta de seu telefone fixo e a linha, óbvio, fora-lhe cortada. Rubens só foi perceber que estava sem telefone em casa três meses depois. Viu que não precisava nem do telefone fixo. Manteve-o mudo desde então.
Daí o presente de grego de Ofélia.
- Já está habilitado, porque sei que você não tem paciência pra essas coisas e tá com um pouco de crédito. Só falta carregar na tomada e ligar - esclarecera Ofélia à ocasião, já com os peitos de fora.
Rubens lembra que agradecera o presente, mas não tocara nele, a caixa permanece fechada e no mesmo lugar em que Ofélia a deixara, uma fina camada de pó a reveste.
Rubens levanta do sofá para pegar o terceiro latão na geladeira e para colocar um disco do Adoniran na vitrola, o melhor acompanhamento para cerveja. Sente o joelho fisgar. Não é de hoje que Rubens pensa em procurar um médico. Mas médicos também gastam por demais o tempo de Rubens, nunca atendem à hora marcada; ir à farmácia, esperar ser atendido, comprar os remédios, gastam por demais o tempo de Rubens; se prescrita for uma fisioterapia, então, seria um desperdício do tempo de Rubens.
Foda-se o joelho, pensa Rubens, ajeitando-se de novo no sofá. E as crônicas dores de cabeça. E a queimação no estômago. E a fadiga constante.
Na primeira golada do sétimo latão, um barulho eletrônico interfere nos acordes do Um Samba no Bexiga. O celular de Ofélia. Dentro da caixa. Desligado. Bateria descarregada. E a tocar. E só poderia ser Ofélia. Ninguém mais tem o número. Nem Rubens.
Rubens se lembra dos antigos filmes de ficção científica que tanto apreciava em sua juventude, nos quais os cérebros eletrônicos das máquinas adquiriam raciocínio e vontades próprias. Terá o chip, através de alguma quimiossíntese dos átomos de silício de seus circuitos obtido energia para ganhar vida e consciência?, teoriza Rubens, auxiliado pelo álcool que já corre em seu sangue. Será que o telefone também tem três chips, feito o da gorda?, pensa Rubens, e  um arrepio lhe percorre a espinha.
O barulho cessa. Talvez tenha sido o de algum vizinho, procura se acalmar Rubens. E amaldiçoa a perda do tempo a pensar nessas coisas.
Ao fim do décimo latão - Malvina, você não pode me abandonar... -, de novo o barulho, de novo o insistente grilo transistorizado. Rubens pega a caixa, é mesmo dali o barulho. Vai com ela até à sacada e a arremessa certeiramente na lixeira na calçada, à entrada do prédio. E fica a ouvi-la tocar e vibrar. Abre o lacre do décimo primeiro latão.
Nisso, um desses mendigos catadores de lixo passa, ouve o barulho, revolve a lixeira, abre a caixa e depara-se com o celular, reluzente e vivinho da silva, sabe-se lá por que sopro animador. O mendigo olha rapidamente para os lados, enfia o celular no bolso de sua calça a lhe cair pela bunda e sai correndo numa sonora gargalhada. Havia tirado a sorte grande.
Esse é o segredo do sucesso do mundo, ou de quem seja lá que o governe, pensa Rubens, manter todos na merda e os fazer achar que tiraram a sorte grande.

Postar um comentário

0 Comentários