Dialética da Tristeza

Que a tristeza genuína não é causada por fatores externos, ambientais - muitos dos povos mais miseráveis do mundo são também os declaradamente mais felizes.
Que essa é a tristeza ocasional, sazonal, provocada por um revés ou outro da vida, é tristeza que dá e que passa, nada que resista a uma roupa nova, um carro novo, um celular novo, a uma drágea de tarja preta.
Que essa é a tristeza canastrona, atriz medíocre da personagem grandiosa que interpreta, mimética, de imitação. Feito mulher que tinge o cabelo de loiro - mas que não se torna efetivamente loira -, feito o cara que toma viagra - mas que não se torna efetivamente viril.
Que a tristeza autêntica é perene - não é curável, não é doença -, é presente (de grego) dado pelas Musas logo ao nascimento. Que é a tristeza que forjará os poetas. Que o mundo precisa dos poetas. Que os deuses e as Musas precisam dos poetas; mais do que o poeta, deles.
Que essa é a tristeza que polirá à perfeição o espelho em que as Musas se contemplam e se envaidecem, o poeta. De posse da Tristeza das Musas e de um Mobral bem feitinho, ninguém segura o sujeito.
E surgem, para o nosso deleite, coisas assim :
Dialética
(Vinícius de Moraes)
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz 

Mas acontece que eu sou triste...

Ou,
O Poema do Beco
(Manuel Bandeira)
Que importa a paisagem, a Glória, a baía
a linha do horizonte?
-O que vejo é o beco.

Ou,
o cara da música Ouro de Tolo, de Raul Seixas. O cara que devia estar contente porque tem um emprego, um carro do ano, porque fez sucesso : 
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês
.................................................
Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome
Por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
.............................................
Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado...

Ou seja, o cara deveria estar contente... mas não está.

Ou além,
Motivo
(Cecília Meirelles)
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Cecília Meireles, então, se põe à parte da tristeza ou da alegria, não se preocupa com elas, é poeta e pronto. Como fosse o poeta um tipo especial de melancolia, de introspecção. E ele é.

Demos, portanto, vivas à Tristeza. Que a alegria só produz música baiana e sertanejo universitário.

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2 Comentários

  1. Muito bom o seu texto. Quanto aos poetas, nada a acrescentar, exceto que eu consigo reproduzir integralmente esse poema da Cecília Meireles graças ao Fagner, que o musicou. O título do poema é "Motivo" e o da música é "Eu canto".
    Um antigo colega me disse que os primeiros textos bíblicos teriam sido transmitidos (em uma época de analfabetismo quase absoluto) oralmente, de forma cantada, para facilitar sua memorização. Acho que faz sentido.
    Quanto ao Fagner, pisou no tomate quando lançou o disco e "esqueceu" de informar a autoria do poema utilizado como letra (belíssimo, diga-se). Depois, isso foi corrigido. Talvez a mudança de nome tenha sido proposital, quem sabe?

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    1. Conheço a versão musicada de Fagner, que, aliás, foi processado judicialmente pelas filhas de Cecília Meireles por conta da música "Canteiros", na qual se utiliza de uma estrofe do poema "Marcha".
      No caso de Fagner, eu não considero plágio, mas sim uma homenagem, uma releitura, só que precisa dar os devidos créditos, né?

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