Perfume de Mulher

 - Tá faltando uma mulher nesta casa - disse-me uma amiga, isso lá pelos idos de 2001, em uma visita e estada de fim de semana no apartamento de quando eu morei, por três anos, sozinho e fora de meu tórrido torrão natal.
Não era verdade, respondi. Mulher foi o que não faltou naquele apartamento. Foram os três anos mais lautos e opíparos no quesito mulher que já vivi. Naquele fim de semana mesmo, com todo o orgulho besta e exibicionista de um macho com testosterona ainda a sair-lhe pelas orelhas, disse a ela que precisara dispensar uma lebre, adiar um abate, para que pudéssemos nos rever, matar as fraternas saudades, colocar o assunto em dia.
Não era disso que ela falava, eu sabia, é claro. Mas não podia deixar de fazer a provocação, perder a piada de tiozão do churrasco. Ela falava da total impessoalidade do meu apartamento, da aridez de delicadezas, da falta de pequenos sinais de zelo. 
De fato, não havia um adorno sequer no apartamento. Nenhum quadro, nenhum tapetinho na cozinha, nenhuma cortina (nos dias de mais sol, eu esticava um lençol e prendia suas pontas nos cantos da janela da sala), nem mesmo um vaso com um estóico cacto. Nenhum sinal de vida naquele apartamento que não a minha, fora, é claro, as infindáveis legiões de ácaros a se refestelar no carpete cor de burro-quando-foge que revestia a sala e os dois quartos.
Na época, caguei e andei. E falei pra ela ir pegar outra na geladeira. Sem um único pinguim em cima, é claro.
Hoje, vinte e dois anos depois, há quase vinte vivendo com uma mulher (a mesma mulher), com as taxas de testosterona muito mais baixas e já aposentados os meus alforjes de caçador, vejo que minha amiga tinha plena razão. Toda casa precisa da onipresença invisível e cuidadora, que mal se deixa perceber, mas que se faz sentir, dos olhares de uma mulher. Toda casa, para merecer o nome, precisa de um toque feminino, que pode, sem problema algum, também ser impresso por um homem que tenha tais habilidades. Senão, nem é casa, nem é lar. É quarto de hotel de alta rotatividade. É caverna. É toca. Como de fato era o apartamento em que residi. Um covil.
Toda casa precisa de um toque feminino. Um vasinho de violetas no parapeito da janela da cozinha ou da área de serviço. Um porta-retratos ao lado da TV. Uma vela perfumada no banheiro. Um sabonete decorado a emprestar seus eflúvios às meias e às cuecas na gaveta. O pano de prato com motivos florais e bordados no seu perímetro. O imã de geladeira trazido da última viagem. A calcinha lavada e pendurada a secar na torneira do chuveiro.
Pensando nisso, resolvi trazer um toque feminino também para a minha casa virtual, o Marreta do Azarão. Ambiente seco, áspero e desesperançado, um domínio de masculinidade não só tóxica como também radioativa - do que tenho um certo orgulho, devo admitir.
Resolvi aspergir uns ventos de lavanda por aqui, umas bolhas de sabão a estourarem de rir pelo ar. Plantar uma onze-horas nas trincas e nas rugas das paredes mofadas de infiltração do Marreta. Pendurar um sino dos ventos de placas de ágata azul na minha varanda. 
Publicar aqui um poema da Maju. A elemental ruiva das suaves e inefáveis letras, a Curupira guardiã do Bosque das Tímidas e Brejeiras Poesias. Trazer para cá um perfume de mulher.
Poema de nome Masterpiece, obra-prima. Minha interpretação do poema, é claro, pode estar redondamente equivocada, pode não ter sido essa a motivação/necessidade que levou Maju a escrevê-lo, mas pareceu-me dizer de um daqueles relacionamentos que acabam, se não de forma hostil, mal resolvidos, com questões em suspenso, com coisas não ditas, desabafos abafados; justamente para que o adeus não se dê de forma hostil. Sobretudo da parte que foi a rejeitada, a quem muitas vezes só resta, uma vez que preterida, refugiar-se num resto de ilusão de amor-próprio para curar as feridas, dar-se ares de uma maior dignidade e superioridade moral do que as de quem a atraiçoou. Décadence avec élégance.
Porém, a indefinição, o por quê?, aquela coceira em lugar inalcançável, a acompanharão por muito tempo. Ad eternum, até. Daí em diante, situações imaginárias de encontros por acaso com o/a ex, onde tudo será posto às claras - os fantasmas e os esqueletos, enfim, expulsos do armário -, com os dois mais calmos, com o rompimento já distante na linha do tempo, feito uma estação de trem que o horizonte já engoliu, começam a ser mentalmente encenados. Uma espécie de reconstituição do crime, para encontrar novas pistas do infausto.
Os encontros imaginários podem ser dar num supermercado, numa padaria, na quebrada de uma esquina, num show de rock... e evoluírem para um café, uma cerveja, um pastel de feira. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que pensa ansiar por esse encontro, evita-o, procrastina-o. Evita-o sempre que uma possibilidade mais palpável dele ocorrer se avizinha. Caso surja a chance dele não ser tão por acaso. Caso a intersecção pudesse, realmente, ocorrer. Todavia, com uma ajudinha dela. Caso ela soubesse de antemão que ele estaria do outro lado da esquina e a virasse para encontrá-lo. Caso ela o visse entrando no supermercado e, ao invés de seguir seu caminho, entrasse atrás dele e vagasse pelos corredores, pelas prateleiras, pelas seções dos frios, hortifruti etc até que, "acidental e incidentalmente", topasse com ele. Mas configuraria dolo, intenção.
Prefere, assim, não virar a esquina, não entrar mercado. Quer ser pega de surpresa pelo aleatório, e o sucedido, daí pra frente, contará com atenuantes de delito. Terá o Destino como álibi.
Ou, como muitíssimo melhor já escreveu e sintetizou tudo isso Humberto Gessinger : "um dia desses, num desses encontros casuais, talvez a gente se encontre, talvez a gente encontre explicação... um dia desses, num desses encontros casuais, talvez eu diga, minha amiga, prazer em vê-la, até mais..."
Com vocês, finalmente, a poesia aconchegante de Maju.

Masterpiece

meu bem,
não faço ideia das lutas que você tem enfrentado
e agora, pensando sobre tudo que isso envolve, me bate uma vontade enorme de conversar com você sobre tais questões,
mas não podemos.

em algum momento, por alguma coincidência do destino, quem sabe, tenhamos tempo de falar sobre.
continuarei fugindo das oportunidades que surgirem, ao mesmo tempo em que seguirei imaginando como serão quando acontecerem.
talvez um dia, talvez, talvez...

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5 Comentários

  1. Você era então um minimalista quando jovem ,Marreta??? kkkk

    " ....mas pareceu-me dizer de um daqueles relacionamentos que acabam, se não de forma hostil, mal resolvidos, com questões em suspenso, com coisas não ditas, desabafos abafados;" Não seria o caso para quase todos nossos relacionamentos? Coisas não ditas, mal conversadas, sempre ficou faltando algo, uma palavra, uma sentença, um carinho. Triste, mas é a realidade. Até para os platônicos, fica faltando o começo, falta tudo.

    Eu, lendo seu texto, me peguei na vontade de ir a minha prateleira e sacar um livro de Veríssimo que li faz certo tempo: "As mentiras que os homens contam" (não são poucas, devo dizer). Lá jaz uma crônica que se encaixa bem: O Encontro. Sobre um casal que se casou e se separou e, tempo depois se encontram num mercado aleatório, na fila dos vinhos. Talvez eu replique ela no meu blogue algum dia.

    Abraços!!

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    1. Sou minimalista até hoje, tudo quanto é detalhe a mais aqui de casa quem compra é a esposa. Replique a crônica no blog sim, quero ler.
      Abraço.

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  2. Sua interpretação está correta, Marreta. Lisonjeada com cada palavra desse texto. Vou salvar ele.
    Agradeço a dedicatória. ♥

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