É vodka o que rola hoje. Vodka e gelo siberianos com coca-cola ianque. A esta mistura, a este drink, como diriam os mais viadinhos, Rubens batizou de "Guerra Fria", o melhor tratado de paz que dois mundos, depois de décadas de litígio e delicado equilíbrio de poder, puderam estabelecer, a maior herança que puderam legar : álcool de cereais e propaganda de falsa felicidade engarrafada ou enlatada, embotamento e um iluso modo de vida como meta da existência. Pouco mais que isso é necessário para manter o domínio do planeta.
Rubens vem com dois Guerras Frias da cozinha : bem fraco o destinado a Isadora, praticamente fogos de artifício, não a quer ainda fora de combate; quase nuclear o seu, um megaton, que Rubens sempre achou mais bonito o brega Kremlin que a clean e impessoal Casa Branca.
- Esta deve ser o quê, a nossa terceira ou quarta ... - começa Isadora
- A quarta. Nossa quarta vez - Rubens ajudando-a em sua contabilidade.
- E isso num tempo de o quê, dois ou...
- Três. Praticamente três meses.
- E acha isso normal?
- Para mim, sim. Vejo pouco meus amigos.
- Amigos ?!?! Então, é isso que eu sou, uma amiga com quem você trepa, às vezes?
- Não sei porque você coloca a situação de forma tão depreciativa.
- Não? Nem desconfia, mesmo?
- Dá aqui seu copo, esse já era, vou reabastecer.
E Rubens caminha para a cozinha. Não para ganhar tempo e pensar no que responderá à Isadora, mas para respirar fundo, ganhar paciência para lhe explicar, o que nenhuma delas entende. Pelo canto do olho, percebe que Isadora, antes totalmente nua, exposta e largada na cama, sentou-se e puxou o lençol à cintura. Decide "carregar" um pouco mais na Guerra Fria de Isadora desta vez, ela estava se tornando indócil.
- Olha - começa Rubens, tomando um bom gole - quando eu quero, por exemplo, relembrar velhas músicas, filmes, livros e gibis, percorrer uns sebos da cidade, ligo pro Marcão, que lembra tudo do entretenimento das décadas de 80 e 90, mas que, por outro lado, não põe uma gota de álcool na boca, o Marcão; se eu quero sentar na mesa de um boteco, encher a cara, falar um monte de besteiras, ligo pro Hamilton, que não sabe a diferença entre o Arqueiro Verde e o Gavião Arqueiro, que acha que o Namor e o Aquaman moram na mesma cidade, mas que é um bom e firme copo, um fiel companheiro de ressacas, de festas e funerais. Quando eu vou a um sebo de livros antigos com um, o outro não se ofende, não fica com ciúmes; quando vou ao buteco com o outro, o um também não está nem aí, não fica com cobranças.
- E eu sou a amiga que você chama quando quer trepar, quando só uma punheta não resolve - e Isadora dá uma emborcada maior que a de Rubens, praticamente liquida o copo numa única talagada. De raiva.
- Continua colocando a coisa de uma forma torpe e distorcida.
- Torpe é a puta que te pariu! E pega outra dessa merda pra mim. Sem gelo.
Outra dose, muito mais cossaco que confederados, chega às mãos de Isadora, que entorna.
- Então, tá combinado, é quase nada, é tudo somente sexo e amizade? De quem é mesmo esta merda?
- Do Ritchie. Dele, gosto mais de "A vida tem dessas coisas", perdi a hora, mas encontrei você aqui. E como assim, somente sexo e amizade? Há algo que melhor se completem e justifiquem? Esferas que melhor se interseccionem?
- Me parece que você não pretende mudar essa situação, né? - Isadora, notando a potência da nova bebida e indo mais devagar; pretende abrir as pernas pra Rubens mais uma vez, ainda hoje, mas não ainda, não vencida.
- Olha - prossegue Rubens em sua peroração -, eu sou capaz de manter uma amizade por décadas, já um namoro... e eu quero que você fique por um bom tempo.
- Sei, é melhor pra mim, né? Tá me cheirando ao típico canalha bonzinho.
- Posso ser o bonzinho canalha. Prefere?
- E é só o que você tem a oferecer no seu menu?
- Sou homem de precários dotes culinários.
Isadora ri, a bomba A foi desarmada; não obstante, seu poderio permanece incubado. Rubens ri também, vai na onda de Isadora, aproveita para aproximar-se
- Rubens... por acaso você vai me comer de novo agora?
- Acho que ainda preciso de uns minutos.
- Então para de brincar com meus mamilos.
- Me empolguei, me distrai...
- Sei... pega outra dose pra mim...
- A vodka já era - grita Rubens da cozinha -, vai de rum?
- Até querosene, se for só o que tiver. - E Isadora volta a se descobrir, a embriaguez lhe afogueia as faces, o peito, a bacurinha.
- E você não acredita mesmo em amizade sem sexo entre um homem e uma mulher?
- Só se um for gay. E se a amiga é que for sapata, o cara vai continuar pensando que um dia ainda come.
- Eu tô falando sério...
- Acredito, acredito sim. Com aquelas amigas que não me atraem sexualmente, ou com aquelas a quem eu não atraio da mesma forma, ou quando os dois têm interesses em trepar, mas imperativos ainda maiores se interpõem entre os dois nada pequenos querer e poder.
- E o que pode ser mais imperativo que o querer e o poder?
- O dever.
- E já aconteceu de? Uma amiga se sentir atraída por você e você não?
- Sim, poucas vezes, mas sim.
- E?
- Ela sofria.
- E de você querer transar com uma amiga e ela não?
- Sim, várias vezes.
- E?
- Eu sofria.
- E algum caso do dever empatando a foda do querer e poder?
- Sim.
- Aí os dois sofriam?
- Resignavam-se. Que é uma forma covarde de sofrimento.
- E quando tudo era recíproco? Os dois tinham tesão um no outro e o querer desembocava no poder? Se eu estou aqui...
- Íamos pra cama, durante um tempo. Depois, sofríamos.
- Do jeito como fala, parece que as relações entre as pessoas, seja a amizade, os amores, o sexo, são só protelações para o sofrimento, que, inevitável, virá.
Os dois calam instantes. Fazem escorrer pelo esôfago mais um licencioso e quente trago de rum e Isadora é que traz as palavras de volta.
- Acha mesmo que tudo deságua e acaba em sofrimento?
- E não é precisamente disso que estamos aqui a falar, o tempo todo?
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