A Ditadura das Bandeiras

Republico o texto "A Ditadura das Bandeiras", escrito em 25 de junho de 2010, por ocasião da Copa do Mundo de 2010. Republico porque perdi a paciência de ficar chovendo no  molhado, republico porque não estou com ânimo para ficar escrevendo mais do mesmo, republico porque nada mudou, porque nada mudará, republico porque a republicarei em 2018, 2022, 2026...
A burrice continua, companheiros, ou, melhor, o falso patriotismo, a hipocrisia, o fingimento, a falta de vergonha na cara.

"Está tudo embandeirado. As ruas, as portas dos estabelecimentos comerciais, os postos de gasolina, as janelas dos apartamentos, os supermercados, os bares, as escolas; as pessoas estão embandeiradas, as bundas, os cachorros de madame (é sério que vi um poodle com o pelo tingido de verde e amarelo) e os carros.
Sobretudo os carros, a mais evidente extensão do pau do dono do veículo, portanto há paus embandeirados por aí, também. Há bandeiras cobrindo os capôs dos carros feito caixão de herói de guerra, há bandeiras obstruindo a visão da janela traseira e, em muito maior número, bandeiras pequenas, em nylon ou matéria plástica, hasteadas nas antenas ou em varetas adaptáveis ao espaço entre os vidros laterais e a capota.
Antes que alguém coloque a bandeira nacional na enorme lista das coisas de que não gosto, devo dizer que nada tenho contra a bandeira : se sua ostentação fosse de uso costumeiro, se a figura de lema positivista fosse presença rotineira na vida das pessoas. Abrindo um parênteses, a única coisa que me desagrada no nosso "lindo pendão da esperança" é justamente o "ordem e progresso", o tal positivismo me parece coisa de autoajuda.
O estadunidense age assim, a bandeira americana é onipresente em seu dia-a-dia, para onde se olhe, a bandeira lá está. Também não simpatizo com esse patriotismo quase fanático, mercadológico, inclusive, mas ao menos é coerente.
No Brasil, não. Aqui o nosso "símbolo augusto da paz" só é desfraldado na copa do mundo de futebol. A bandeira, aqui, não é símbolo da nação, é símbolo do futebol.
Aí eu fico puto, mesmo. Por que não fazer tremular "o lábaro que ostentas estrelado" em outras situações que não o futebol? Foi promovido no emprego? Tremule a bandeira, merda! O filho tirou notas melhores na escola? Tremule a bandeira, caralho! Um político foi exonerado a bem do serviço público? Tremule a bandeira, porra! A mulher não teve TPM esse mês? Tremule a bandeira, ora essa! O intestino e o pau andam a bem funcionar? Tremule a bandeira, tremule e tremule.
Mas não! É só na bosta do futebol.
Então sou tomado por ganas de me lançar numa ação subversiva contra esse patriotismo da bola. Tem me dado vontade de encher a cara e sair à rua, de madrugada, com meu passo de gato manco, carregando um isqueiro BIC no bolso - eu que piromaníaco fui na infância e desenvolvi várias técnicas de atear fogo em terrenos baldios.
Eu percorreria as ruas e iria ateando fogo em cada bandeira que eu encontrasse acoplada a um carro. Fico me imaginando como uma resistência solitária a essa ditadura das bandeiras. Em meu delírio justiceiro (e justo), vejo ruas e avenidas se estendendo por quarteirões e mais quarteirões de bandeiras a crepitar e derreter, uma trilha flamejante na brenha da noite sem lua, aberta a golpes de isqueiro; eu, o portador da chama.
Claro que - infelizmente - não sairei pela madrugada a brincar com pirotecnias. Na verdade, não vou nem mesmo encher a cara.
Contudo fica registrado meu desejo e, quem sabe?, lançada uma ideia. Para os mais corajosos que eu, para os que ainda são do fogo."

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