Gepeto Von Frankenstein

Tomou-a como um projeto. Tomou-a como uma cadeira velha posta à caçamba de lixo, ocorreu-lhe dar-lhe reparo, nova pintura; mais pela necessidade de uma ocupação que de uma cadeira - estava em um período de abstinência e não beber lhe deixava um grande tempo a ser preenchido.
Tomou-a sem rosto, sem nenhum atrativo físico, sem alma, sem moral, pouca coisa diferente dos manequins de vitrines, plásticos, sem mamilos, cu ou buceta, ocorreu-lhe dar-lhe forma e dignidade; mais pela necessidade de um hobby que de uma companhia feminina - já foi dito que não beber cavava largo tempo ocioso em seu dia.
Evocando técnica aprendida em Educação Artística na sexta série, Ele começou sua empreita. Abriu seu porão, seus arquivos mortos. Cortou em finas tiras os seus jornais amarelados, seus gibis em preto e branco, suas enciclopédias desatualizadas. A ela, cobriu de cola e aplicou camadas de seu passado. Uma camada e mais cola, outra camada e mais cola. O interior dela, despovoado de dar dó, seria construído das sólidas memórias dele.
A superfície - rosto, pele, peito, bunda -, compôs com mais cola e mais camadas e camadas de tiras de papel, agora de revistas coloridas, em papel couché, de livros de fotografia, turismo e paisagismo, e de graphic novels nunca publicadas, existentes apenas na biblioteca de seus devaneios.
Culpa dada a quem é seu dono, a falta de habilidade manual d'Ele fê-la troncha, tronco e membros desproporcionados, cabelos desgrenhados, dentes imperfeitos. Mas invólucro oco que ela era - feito aquelas cascas que as cigarras abandonam nos troncos das árvores ao se tornarem adultas -, ao fim da obra, tudo nela era Ele, ainda que uma caricatura, ainda que um autorretrato deformado. Assim, narciso empedernido, Ele quase chegou mesmo a gostar dela.
Ele mirou sua obra acabada, seu pinóquio-frankenstein - muito mais dissimulado pinóquio que atormentado frankenstein -, e ordenou-lhe : Parla! E ela falou. A voz, óbvio, também era a d'Ele, que voz autônoma ela nunca tivera.
Porém o tempo a tudo nos cansa e deposita enfado. Não porque seja (ele, o tempo) cíclico e infinito, mas porque sempre descortina a realidade. 
Passados o afã e o entusiasmo da concepção, Ele começou a ver sua criação como ela realmente era, como nunca deixara de ser. Nada havia mudado nela, nada mais lógico, inevitável e automático, portanto, que tudo voltasse ao seu estado original. De pura penúria.
Muito tempo livre dá nisso, pensou Ele. Era hora de voltar a beber.
Ela ainda era aquela cadeira velha posta à caçamba de lixo pelo primeiro dono; Ele não havia lhe dado ou recuperado qualquer serventia. Ela ainda era aquele manequim de plástico, e seu rosto não era mais um rosto - nunca fora. 
Era apenas papel machê.

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