UM E OUTRO

Os trajetos opostos de Um e Outro cruzavam-se em todos os chamados dias úteis da semana, por volta das 6 horas da manhã.
Um : roupas por passar, cabelo por aparar, tênis por trocar, barba por fazer, bolsa cáqui a tiracolo, sugerindo o exercer de uma atividade de cunho cerebral, ou a mimese desta, e uma assídua lata de cerveja na mão.
Outro : camisa e calça sociais bem passadas e engomadas, cinto a imitar couro com inicial do nome na fivela, sapatos comprados em saldões de grandes magazines, não obstante honestos e lustrados, um crachá plastificado no peito, pendendo de uma fita azul feito uma medalha ou condecoração, sugerindo atividade relacionada a vendas, talvez gerente de alguma loja de crediários, vista a presença de uma gravata de crochê.
Um mal olhava para o Outro, Um mal olhava para qualquer pessoa; Outro sempre olhava para Um, na procura, pensou Um inicialmente, de um daqueles cumprimentos a meneios de cabeça, uma mímica de bom-dia, Um não gosta de bom-dia, boa-tarde ou boa-noite.
Percebeu, depois, Um, o que em si tanto atraía o olhar incomodado de Outro, era a lata de cerveja em sua mão; Outro fazia sabe-se lá que juízos de valor sobre Um, o que pouco se lhe dava, Um cagava e andava para Outro, e bebia sua cerveja, Um respondia assim a todas as chateações do mundo, tomava sua cerveja.
Um dia, ainda escuro, já que época de horário de verão, Outro interceptou os passos de Um :
- Você não tem vergonha ? - interpelou Outro.
- De quê ? - foi a resposta-pergunta de Um.
- De já, logo cedo, estar aí com esta lata de cerveja na mão ? - prosseguiu Outro, com voz de conquistador barato, Outro era vendedor, com toda a certeza, concluiu Um.
- E você ? Também não tem vergonha ? - retrucou Um.
- Eu ?!?!? Vergonha de quê ? - proferiu Outro, muito mais um desafio que uma pergunta, um desafio lançado a Um para que fosse apontada nele, Outro, uma única imperfeição, desafio que Outro estava certo de vencer, seguro da sobriedade e correção de sua postura e trajar.
Um respondeu-lhe :
- Não tem vergonha de já, logo cedo, estar aí com este crachá no peito?

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