Pequeno Conto Noturno (20)

Samsara se senta na cama, de frente para Rubens, costas apoiadas na parede, nua, pernas cruzadas em "X", braços unidos em círculo a cingir os joelhos, o ar a ventilar suas bastas pilosidades.
- É isso, então?!?! Toda essa merda para isso? - desabafa Samsara, enquanto seca o último gole de uísque, mastiga o gelo a seguir.
Rubens normalmente consegue detectar os dias em que não se deve trepar com Samsara, os dias nos quais ela se torna intragável depois da metida, a revolta de Samsara contra o mundo sempre eclode depois da foda; fosse antes, pensa Rubens, o tesão acumulado a manteria minimamente interessante, mas depois... Depois da foda, homem perde todo o interesse pelo o que a mulher tenha a dizer. Hoje, Rubens não reconheceu os sinais pós-coito em Samsara. Azar. Terá que ver onde a coisa vai dar.
- Para isso, o quê? - pergunta Rubens e dá uma boa calibrada no copo de Samsara com mais uísque, dose tripla, quanto antes a dopar, menor o suplício, pensa ele.
- Décadas, - vocifera Samsara e dá uma boa emborcada - praticamente três décadas de estudo, especialização, aperfeiçoamento, de muitas noites em claro, para chegar nesta estagnação profissional ? Para valer, moral e monetariamente, a mesma coisa que qualquer idiota sem pelo no saco com diploma tirado à distância?
- É a globalização, é a pasteurização, é o pastiche - diz, sem dizer nada, Rubens, querendo generalizar, desviar e fazer morrer o assunto, tentando abrandar Samsara com as técnicas "tá todo mundo na mesma situação que a sua" e "tem gente por aí muito pior que você"; técnicas católicas-cristãs de conformismo, Rubens é ateu, mas amoral o suficiente para se valer das estratégias do inimigo caso seja em benefício próprio.
- Globalização é o caralho! Pastiche é o cacete! - vocifera Samsara, sinalizando claramente o malogro do ardil de Rubens, que suspira em rendição e dá uma entornada.
- Sempre, - prossegue Samsara - sempre, em todos os níveis de escolaridade pelos quais passei, disseram-me acima da média, fizeram-me acreditar que eu era alguém a fazer diferença, que eu tinha um puta potencial, porra. E, agora, eu paro, olho...e aí? Era isso? É assim que acaba?
- As coisas não acabam, - recomeça Rubens, tentando um novo caminho, uma nova tática - mas chega um momento em que elas estacionam, estabilizam, deixam de nos surpreender, entram num intervalo; com uns acontece mais cedo, com outros, mais tarde.
- Pois comigo foi cedíssimo! - brada Samsara.
- Será?
- Certeza! Eu, nós, somos pessoas diferenciadas - e, de novo, Samsara deixa o copo só no gelo, Rubens a reabastece, outra tripla.
- Eu já acho que somos somente pessoas comuns com uma autoimagem imensamente ampliada de nós mesmos, não somos idiotas, mas também não fomos muito além.
- Então tava todo mundo errado? E todos os que sempre afirmaram a minha superioridade ao rebanho? Todas mentiram? - ataca Samsara.
- Dilataram a verdade - contra-ataca Rubens.
- Disseram só pra me agradar? - escudeia-se Samsara.
- Disseram só pra te comer! - touché de Rubens.
Samsara cala momentaneamente. Podia bem ser verdade. Tinha, de fato, terminado em algumas camas dessas pessoas tão elogiosas.
- Aliás, - inicia o arremate Rubens, sentindo o pau dar mostras de nova atividade - olhando para você desse ângulo, parece-me que aquelas suas celulitezinhas desapareceram, aquelas que você tinha no encontro das pernas com a bunda, sua dieta está surtindo efeito.
- Verdade? - anima-se um pouco Samsara.
- Lógico.

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