1984

O chumbo ameaça novamente nossas cabeças
E é tempo de cupins alados.
Protegemo-nos em nossas torres de barro
Fagocitados por nossas próprias edificações.
Tomamos nosso café, fraco e amargo,
Pensando em caramelada cerveja preta.
Espumamos de hidrofobia
Em nossas coleiras de grilhões invisíveis
(atados pescoço a pescoço)
E por isso mesmo impossíveis de romper.
Fodemos pra passar o tempo,
Só pra ver se o pau ainda sobe,
Se o gozo ainda nos dá 15minutos de falso afeto.
Nossos guarda-chuvas estão abertos na sala
E os pernilongos vomitam seu zumbido
E sua menstruação contaminada em nós.
Parte de nosso suor nos embosteia,
Outra escorre e alaga nosso chão,
E a maior, evapora,
Criando uma atmosfera de neblina grudenta em nossos pulmões.
Fodemos de novo.
Não por desejo,
E sim para manter estabelecida e clara
A relação de domínio e jugo :
Como gladiadores que mal se conhecem
Mas sabem que um irá causar a morte do outro.
Há um carnaval de pratos sujos
Berrando na pia onde urinamos
Por medo de despencarmos no abismo
Que germinou no espelho do nosso banheiro.
Gritos, que imigram de regiões mais frias,
Nessa época do ano,
Para a nossa caldeira constante,
Batem nas janelas querendo fazer ninhos em nossos labirintos.
O correio tenta,
Afugentado pelos latidos de nossas mágoas,
Passar angústias envelopadas por debaixo de nossa soleira
E testemunhas de Jeová e vendedoras da Avon
Estragam nosso almoço de domingo.
Fodemos de novo.
Não para provar nossa estima,
Cada gozo infligido ao outro
É uma amostra de poder pessoal,
Um castigo por termos que viver juntos.
A comida se reproduz, cresce,
Se decompõe e cria Poltergeisters em nossa geladeira.
Nossa própria pele, macilenta e emborrachada,
Nos serve de sustento,
Numa competição desleal com os ácaros do gênero Klingon.
O rádio toca Belchior,
Pombas brancas comem restos de carne podre
E pelancas rejeitadas pelos açougues
E em seguida defecam zoonoses nos parapeitos de nossas memórias.
Fodemos de novo.
Não pra criar vida,
Mas sim para zombar e aviltar a mesma.
Nos colidimos e esfolamos como duas pedras de sílex
Ou gravetos secos pirógenos.
Inflamamos,
Desperdiçamos e maldizemos nossos gametas
Abortando-os e lambuzando com eles a cara de Deus.
Subo pelo cabo de aço
Do elevador caído em nossos intestinos
E me isolo em meu sótão de dimensão paralela.
Abro minhas clarabóias
E aguardo a enxurrada de ópio
Que fertilizará o massapé de meus neurônios
Nessa cela solitária que é meu próprio crânio:
Sou uma tênia de mim mesmo.

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