Recuerdos de la Noche

Quando eu era inda moço, lá pelos fins da década de 80, inícios da de 90, tinha por prática não rara errar e perambular pelas ruas do centro velho da cidade, ziguezaguear pelo quadrilátero central delimitado pelas avenidas, a leste, Independência, a oeste, Jerônimo Gonçalves, ao sul, Francisco Junqueira e ao norte, Nove de Julho; quadrilátero quadriculado em tabuleiro de xadrez por 13 ruas horizontais a interceptarem 13 ruas verticais. Vagava por elas de madrugada; sobretudo nas fases mais agudas do desânimo e da depressão, nos momentos em que eu estava sem eira nem buceta nem beira.
Eu me punha à rua já passadas as onze horas da noite - hora escura em que o farfalhar das asas do morcego engaiolado em minhas costelas começava a me ensurdecer. Descia pela rua Iguape, onde residia, quebrava à direita e descia na Ramos de Azevedo, meia dúzia de quarteirões abaixo, virava à esquerda na José da Silva, dois quarteirões abaixo cruzava a avenida Francisco Junqueira e seu rio pestilento, passava por debaixo do viaduto Manetão e já saía na desembocadura da Duque de Caxias, a terceira rua horizontal inferior do quadrilátero.
De sua foz, eu caminhava em direção ao centro, cruzando as perpendiculares ruas Floriano Peixoto, Mal. Deodoro, Sete de Setembro, Garibaldi, São José, Marcondes Salgado, Cerqueira César, Barão do Amazonas, Visconde de Inhaúma, Tibiriçá e Álvares Cabral, até a Praça XV, em frente ao Teatro Pedro II. Então, eu quebrava à esquerda, subia um quarteirão pela Álvares Cabral, virava a esquerda de novo, pegava a General Osório e cruzava as supracitadas perpendiculares em sentido oposto, até a av. Independência de novo, subia um quarteirão pela Independência, virava à direita na São Sebastião e as mesmas perpendiculares em direção ao centro, até de novo a Álvares Cabral. E ia assim serpenteando pelas ruas horizontais. Américo Brasiliense, Florêncio de Abreu, Lafaiete, Prudente de Morais, Campos Sales, Rui Barbosa, Bernardino de Campos, Quintino Bocaiúva e avenida Nove de Julho, o limite superior do quadrilátero.
Então, percorrida a minha via crucis, uns 10, 12 km, já um tanto cansado, mas longe de ter a angústia aplacada, eu descia a Independência e rumava para casa.
Nunca fui assaltado. Nem sequer abordado de alguma forma por alguma vítima da sociedade, apesar do avançado da hora e do ermo das ruas criarem um ambiente propício para esse tipo de predador. Eram fins da década de 80, começos da de 90, a democracia fake em que vivemos e a Constituição Prostituta que nos rege já estavam em vigor, mas a bandidagem ainda não tinha se dado completamente conta de que estavam no poder. Eram tempos menos perigosos. Hoje, eu não me atrevo nem em pensar em repetir esse meu solitário calvário. Nem com colete à prova de balas. Nem empunhando o fuzil do Roberto Jefferson.
Também nunca dei mole pro azar. Andava sempre pelo meio da rua, evitava esquinas e recônditos mais escuros e não levava comigo nada que pudesse atrair a cobiça de algum assaltante; sempre estava de roupas velhas, tênis surrados, sem relógio. Aliás, como ando até hoje.
A me guiar em minha jornada noturna, a me servir de bússola, de norte, de farol, de minha estrela polar, havia, encimado no então prédio mais alto do centro, no cruzamento da Independência com a Bernardino de Campos, um enorme relógio luminoso do banco Itaú, que podia ser visto de todo o centro e até de alguns bairros adjacentes e que se alternava em nos exibir as horas e a temperatura. E por ele eu me orientava, controlava meu tempo.
Segundo o relógio do Itaú, eu voltava para casa, em média, depois de duas horas, duas horas e meia de andanças, e com uns dois ou três graus Celsius a menos.
Anos depois - não me lembro exatamente quando -, eu já não andava tanto, ele, que tantos bons serviços prestara à cidade sempre ingrata, foi retirado da paisagem, banido para o arquivo morto da memória, por conta de uma tal lei da Cidade Limpa. Placas, outdoors, painéis luminosos etc com dimensões acima de um limite estabelecido foram removidos em nome de uma menor poluição visual.
Cidade limpa? Removendo outdoors? Menos poluição visual? Arrancando letreiros luminosos? Menos poluição visual e mais limpeza, só retirando o povão que anda, toca música alta, grita, come de boca aberta e emporcalha o chão do calçadão da General Osório e baixada.
Dessa época para cá, primeiro sozinho e depois já com a esposa, mudei-me quatro vezes de residência (espero ser essa em que estou a última, antes do jazigo, é claro) e da sacada do meu apartamento, eu poderia avistá-lo agora, nessa madrugada de sexta para sábado, e ver que ele marcaria por volta de três horas da manhã. Mas olho apenas para o espaço vazio que ficou no lugar dele, para o buraco negro deixado por seu colapso.
Minhas madrugadas na sacada, a ouvir sambas-canções, marchas-ranchos antigas e bolerões do Nélson Gonçalves, seriam melhores se, além da vodka-tônica e de minhas duas gatas, tivesse também a companhia luxuosa do relógio do Itaú.
Eram tempos tristes, é verdade. Mas são recordações felizes.

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7 Comentários

  1. Sensacional o texto, encerrado com uma ótima reflexão. Também tive momentos assm, mas precisaria retroceder para o início da década de 1970, quando voltava pé da casa da namorada e na companhia de um dos dois namorados da minha cunhada mais nova (primeiro um, que logo terminou o namoro e pouco tempo depois o segundo, que chegou a ficar noivo. Ficávamos horas conversando sentados na calçada (e com os bagos doendo, sabe como é...)

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    1. Bons tempos em que os bagos ficavam doendo, por esse motivo, é claro.

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  2. Bela crônica, Marreta. Como sempre.
    Que sacrilégio remover essa obra de arte do brega moderno. Sempre gostei desses mega relógios. Havia em várias cidades. Sumiram todos, em nome do bom gosto e contra a poluição visual, como vc bem colocou.
    Sobre: "mas a bandidagem ainda não tinha se dado completamente conta de que estavam no poder", precisaram de políticos, grandes partidos políticos e a mídia "especializada" bater todos os dias na tecla: "o mundo é de vcs, a dívida histórica está sendo paga junto aos ""desfavorecidos""; peguem o que quiserem, até nossas vidas".
    Eu tinha o costume de caminha à noite. Parei com isso há anos. Mas me fazia bem, à época.
    Abraços!

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    1. Caminhar sempre me fez bem, também. Fora o que ando de ida e volta do trabalho, quando saio para caminhar, saio por volta das cinco horas da tarde e até as seis e meia estou de volta.

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  3. Sim, o prédio era esse mesmo. E a banca da Francisco Spadoni também era um marco; mudou-se mais para a frente, na Independência. A antiga praça só existe hoje numa pintura, num mural muito bonito no Savegnago da Nove de Julho.

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  4. Muito bom! Sua descrição nos faz lembrar de uma época em que era possível se frequentar as ruas. Como sou uma sertaneja ( do verdadeiro Sertão Nordestino), a noite era repleta de magia e luz celeste. Lá, no meu Sertão de menina, apreciava ver as estrelas, porém nem isso se pode mais. Na última vez que voltei lá, tivemos que nos trancar antes das 18:00h, pois os bichos de que tinha medo na infância ( luzernas, mula-sem-cabeça e outras coisas fantasiosas) foram trocados por bípedes tatuados e falando "mano", expressão copiada das bandas de cá. Triste!
    Aqui, nas cidades sulistas, nem estrelas são possíveis de ver, muito menos andar à noite sentindo os cheiros exalados pela dama da noite, que, logo após muita chuva, explodem em flores e cheiros.
    Ainda insisto em andar nas ruas, mas cada vez mais me sinto caçada e cansada de tanta sujeira e feiura. Com escreveu o grande Dostoiévski: só a beleza salvará o mundo. Então, só a beleza da moral e da educação salvaria o Brasil. Muito bom

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