Depois que a cantora, apresentadora, professora e folclorista Inezita Barroso morreu, em 2015, Rolando Boldrin tornou-se o último dos moicanos, dos sertanejos das antigas, dos caipiras raiz.
Minhas lembranças mais antigas de Boldrin são da minha infância, de quando, no quadro final do extinto Som Brasil, transmitido pela rede Globo em suas manhãs dominicais, ele fazia duo com Ranchinho, órfão da dupla Alvarenga e Ranchinho. Contavam causos e cantavam modas de viola repletos da malícia e do humor brejeiro do matuto.
Fui ter noticias de Boldrin só muito depois dessa época, quando, se não me engano, em 2005, começou a apresentar o excelente Sr. Brasil, pela TV Cultura, do qual fui fiel espectador no início e, depois, com o aumento das atribulações cotidianas, continuei a assistir sempre que possível.
Em Sr. Brasil, Boldrin ampliou o seu (e o nosso) universo musical. Não se ateve ao sertanejo, prestigiou e divulgou todos os ritmos regionais do país. Fazia questão de sempre exibir o nome do compositor da música que estava a ser interpretada no rodapé da tela. Sendo um ele próprio, Boldrin sempre rendeu homenagens à figura esquecida e, muitas vezes, até desconhecida do compositor.
Dessa admiração ao autor, nasceu um de seus causos mais célebres.
"O sujeito, cansado da viagem a cavalo, sequioso pelo pó da estrada, apeou numa bodega à beira do caminho para matar a sua sede e dar uma esticada no esqueleto. Assim que pegou a sua cervejinha no balcão e sentou-se à mesa, um som mavioso tomou-lhe os ouvidos. Olhou em direção à cantoria e viu duas gaiolas, um canário-da-terra em cada uma. Era de um deles que emanava aquela sinfonia silvestre; o outro, mudo e calado. Acabou de tomar sua cerveja e perguntou ao dono da venda o quanto ele queria pelo canarinho cantor.
- Mil reais, decretou o dono da ave.
- É muito dinheiro para um canarinho - começou a pechinchar o homem.
- Mas você ouviu como ele canta, né?
- É, é verdade... de qualquer jeito, eu não tenho tanto dinheiro assim. E pelo outro canarinho, o que está calado, quanto o senhor quer?
- Dez mil reais - disse o dono do armazém.
- Pãããããããta que o pariu - exclamou o viajante - mil pelo que canta que é uma beleza e dez mil pelo que não canta porra nenhuma? Que maluquice é essa?
- É o que calado - disse o dono da bodega - é o compositor.
Não tenho nenhum LP de Boldrin, porém, com o advento da internet, guardo um CD gravado com 12 álbuns dele em mp3. Material que me permitiu e me deu o privilégio de conhecer uns poucos centímetros abaixo da superfície dos abissais talentos e trabalhos de Boldrin.
Agora, fiquei sabendo que, na tarde de ontem, 09/11/2022, aos 86 anos, por conta de uma insuficiência renal e respiratória, Rolando Boldrin enfiou a sua viola no saco e foi cantar em outra freguesia.
Deixou-nos aqui, ruminando essa Vida Marvada.
4 Comentários
Não acompanhei a carreira deste talentoso sr. mas lembro do extinto 'som brasil' nos domingos de manhã. A abertura, com "vida marvada"...as ves uma corrida de F1 raiz , pré ayrton senna e a babaçao de ovo da globo...tempo bom, saudades e muita gente boa indo embora.
ResponderExcluirCássio - Recife/PE
Sim, hoje também morreu o Sargento Pincel, dos Trapalhões.
ExcluirEu gostava pra caramba do Boldrin (tenho dois vinis) mesmo que pouco assistisse seus programas da TV Cultura. Você certamente deve conhecer a "Moda do fim do mundo", uma parceria dele com o Tom Zé. Se não conhece, olhaí o link: https://www.youtube.com/watch?v=5SJZGK-Iu7k
ResponderExcluirOpa, se conheço. É aquela do guardar uma comadre para dispois do fim do mundo a gente ter um pecadinho pra confessar pro padre.
Excluir