A Noite das Garrafas Naufragadas

E ele esvaziou uma garrafa.
Discou para um antigo número de telefone dela.
Desencavado de uma agenda
(capa dura azul, espiral plástica laranja)
De páginas com o prazo de validade tão vencido
Que até as traças lhes passam ao largo
Sem ousarem comer um naco delas.
"Esse número não existe. Tente de novo ou consulte a sua operadora",
Ouviu em gravação eletrônica.
Em todas as dezoito vezes em que ligou.
 
E ele esvaziou outra garrafa.
Ligou seu computador
(desktop, windows XP),
Encontrou contato de e-mail dela.
Não lhe escreveu um e-mail, um cisco de telegrama.
Redigiu extenso e caudaloso texto.
Imaginou-se escrevendo com caneta bic azul,
Em papel de carta pautado,
Dobrando-o e o pondo no envelope,
Caprichando na caligrafia do destinatário e do remetente,
Finalmente, lambendo o verso do selo e o colando ao envelope. 
Enviara dezenas de cartas a ela,
Naqueles tempos. 
Quanto de seu DNA 
Não remetera a ela nos versos daqueles selos lambidos?
Quanto de sua alma ficara com ela,
Aprisionada em alguma caixa, pasta, gaveta?
Clicou em "enviar".
"Failure sending mail",
Trouxe-lhe em resposta o carteiro virtual.
Em todas as onze vezes em que reenviou o e-mail.

E ele esvaziou mais uma garrafa.
Bater à porta dela, então.
Anotara o endereço dela alguma vez,
Em algum lugar?
Não. Nunca.
O que não o impediu.
Calçou seus velhos tênis batizados por Hermes,
Flanou às ruas 
E eles estavam lá,
Impregnados e fosforescentes no pavimento de basalto
(sua ex-estrada para Oz),
Que tantas vezes percorrera até ela : 
Os rastros-fantasmas de suas pegadas,
Os fogos-fátuos de seus passos;
O botão do interfone do apartamento dela
Com suas digitais fossilizadas.
Tocou.
"Sinto  muito... ela não mora mais aqui".
Disse-lhe uma voz arrancada de seu sono.
Nas três primeiras vezes em que ele tocou.
Na quarta, a voz ameaçou chamar a polícia.

Resignou-se.
Por ora.

Esta é mesmo a noite das garrafas de náufrago naufragadas.

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3 Comentários

  1. Felizmente, resignou-se. O fígado merece descanso.

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  2. Que texto espetacular, Marreta!
    "Quanto de seu DNA
    Não remetera a ela nos versos daqueles selos lambidos?" Genial!

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    1. Rapaz, e eu tive a ideia quando estava já quase a adormecer no meu travesseiro. Geralmente, quando isso acontece, ou eu levanto e anoto o esquema geral dela para continuar depois ou durmo e torço para me lembrar dela no dia seguinte, o que raramente acontece. Desta vez, não me levantei e ela acordou comigo no dia seguinte.Fiquei matutando nela por quase dois dias e ela acabou sendo parida nessa forma final.

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