Se uma musa grega - sim, tem que ser grega -, uma Calíope de helênicos lábios, dóricos glúteos e jônicos peitos e cabelos e pelos bastos, revoltos, encapelados e encrespados feito o Mar Egeu em dia de ressaca de Posseidon, viesse a mim, sabendo à ambrosia brotando-lhe do entrepernas, e, em oferta, me perguntasse : - gostarias de escrever feito quem? Homero? Ésquilo? Hesíodo? Eurípedes? Virgílio? Camões? Dante? Cervantes? Shakespeare? Pessoa? James Joyce? Machado de Assis? Suassuna?
Eu, passando a ela uma lata aberta de gelada cerveja, já com uma semiereção e a imaginar carnais odisseias, pentelhos tricotados de Penélope e ilhas de Lesbos, responderia-lhe, com a maior certeza que já tive na vida, em uma única palavra : - Bukowski. Quereria escrever como o velho Buk.
Anexo à inspiração, que ela me concederia em troca de gozos mortais, pediria-lhe também um fígado de Prometeu. Para me pôr em pé no dia seguinte a uma noite de intensa produção de textos. Um fígado de Prometeu para me recuperar do abutre, da rapina, do urubu do álcool, da insônia, da solidão. Junto ao talento, um renascimento para me salvaguardar dele - poucas coisas são mais nocivas que o talento.
Junto ao abutre e ao urubu, a cegonha - sim, urubu e cegonha são primos taxonômicos, da ordem dos ciconiformes. Um decompõe e limpa o lixo, o outro traz vida nova a ser carcomida.
- Bukowski - responderia à pentelhuda Calíope -, quereria escrever feito Bukowski.
"Por mim eu ficava em casa, deitado em minha cama com uma boa garrafa de
algo qualquer para molhar o bico; só não fico porque há de chegar o dia
em que a preguiça me roubará os sonhos, a força para realizá-los.
Tenho sonhos para concretizar, transformar em metas; sonhos inferiores a
fama e fortuna; sonhos pequenos como realização pessoal e felicidade de
fim de tarde, à noite, acompanhado, não dormir e acordar ao lado de
quem me fez companhia nessa insônia.
Deixo minha cama e enfrento esse mundo cheio de calamidades, rodeado por
pessoas tão desinteressantes, pois no fundo ainda tenho fé que em meio a
tantos humanos, resida um pouco de humanidade. Humanidade de saber
respeitar, de entender que estamos abaixo da ordem natural, que uns
virão, outros irão, é o normal de se acontecer. Humanidade que os
animais parecem conhecer melhor, aquela que faz famílias firmes, nada
desses abandonos que se vê nessas caixas coloridas que se tem hoje em
dia; seja por qualquer motivo que for.
Vou trabalhar, exalar mal humor, soltar sorrisos de vez em quando, em
busca de alguém que encontre algo pelo qual lutar por trás desse
casmurro que venho me transformando. Visto minha roupa de ser humano dia
após dia pois há alguém lá fora que é para meu bico, que é a minha
garrafa.
Os problemas não se resolverão, sempre cá estiveram, sempre cá estarão,
mas a preocupação com o que se tem de errado se amenizará.
Vou viver com uma e somente uma pessoa e quando essa garrafa
esvaziar-se, não será hora de arranjar outra na esquina por dinheiro,
será minha vez de também esvaziar e da cama não levantar novamente.
Findarão-se as diversões vazias, as preocupações com uma sociedade que
nem me diz respeito, as poesias bêbadas de fim de domingo. Só não
findará a consciência de que algo está fora de lugar, não findará a
poesia que luta, o engajamento. Alguém há de se tornar a garrafa e assim
como eu, dar continuidade ao legado dos tolos. Legado dos que ainda
acreditam que há muito a ser explorado, mas que não vivem no tempo em
que esse potencial será alcançado.”
0 Comentários