Desjejum - Uma Farsa em 5 Atos

Há cerca de duas ou três semanas, prometi ao meu primo Leitinho que encontraria uma velha foto tirada em sua formatura, em 1989, escanearia-a e a enviaria para ele.
Acontece que as minhas velhas fotos, minhas velhas cartas, minhas velhas e encalabouçadas recordações, ficam guardadas em caixas de papelão, protegidas por uma aura de naftalina, no fundo do maleiro de um ármário embutido - meu passado é feito de papelão e naftalina. E sempre dá uma preguiça muito grande (talvez mais que a preguiça seja o medo da melancolia) de subir num banquinho ou numa escada e revirar tudo até achar a caixa correta.
De forma que fui protelando, protelando, descumprindo a promessa feita ao Leitinho. Porém, promessa feita em mesa de bar, em meio a papo de macho, é coisa sagrada. Rompi a inércia, revirei as caixas de papelão e encontrei a foto. Mas, antes dela, várias outras reminiscências; divertidas, a maioria, e se mantêm divertidas até hoje, o que é bom de constatar; dolorosas, outras, mas que só trazem hoje a memória da dor que causaram, a dor em si dissipou-se há tempos, o que também é bom de constatar. Tempo, tempo, tempo, mano velho...
Entre elas, um escrito de 2001, um dos mais canalhas e chauvinistas que já escrevi. Acho que foi o primeiro texto ao qual tentei dar um formato de conto ou coisa que o valha; antes eu só escrevia cartas (centenas delas, é verdade) e pretensos poemas e poesias (também umas duas ou três centenas à época).
O texto, na verdade, foi também uma carta, uma carta endereçada ao amigo Fernandão. Na época, eu era solteiro, tinha 30 e poucos anos, morava sozinho e estava passando por uma "seca" desgraçada, um jejum sexual filho da puta, caía menos buceta em mim que do que chuva no sistema Cantareira, uma coisa pavorosa, triste, mesmo. Em parte pela  minha notória falta de habilidade com a mulherada e em parte por estar num período meio brabo de encasulamento existencial.
Chega, contudo, uma hora em que a frescura tem que ser mandada à puta que o pariu!!! E esse texto, essa carta ao Fernandão, relata justamente o meu desjejum.
Fernandão, velho e corno amigo, acho que ainda deve tê-la, a carta, em seus guardados, lembro-me de que você gostou pra caralho dela, mostrou prum monte de gente. Acredito, salvo engano da memória, que a digitei, imprimi-a - para poupá-lo do esforço champollioniano de decifrar meus garranchos -, pu-la em um envelope (ainda não eram os tristes tempos de e-mail e zapzap), selei-a e a enviei pelas asas do nosso valoroso Correio Aéreo Nacional.
O que tenho aqui em mãos é o original manuscrito, que agora transcreverei. Assim, podem haver pequenas diferenças no texto, nada significativo, no entanto. Manterei também a pontuação original e resistirei em acrescentar detalhes que ficaram de fora. Espero que se divirta com ela, de novo.
DESJEJUM (Uma farsa em 5 atos)
I) O Impulso
Foi de súbito! Como que desvinculada de qualquer pensamento consciente, fermentou-se no meu imo, tomou-me de assalto as cordas vocais e explodiu trinitrotoluenicamente de minha boca a seguinte frase : "Quero comer uma buceta!"
Aturdido, olhei ao redor e não havia mais viva alma; de mim mesmo havia saído tal afirmação. Meio que numa espécie de desejo de mulher grávida (bate três vezes na madeira : toc! toc! toc!), beirando o esdrúxulo de querer, por exemplo, rapadura com escargot. Um desejo quase que tangenciando o insano, como que, de repente, ter a vontade incontrolável de ouvir um disco do Chitãozinho e Xororó (toc! toc! toc! toc! toc! toc! toc! toc! toc! toc! toc!).
Tentei dispersar o pensamento, mas a frase, embora não mais verbalizada, ficou ecoando pelas paredes do apartamento, tornou-se reverberante trem de metrô em minhas circunvoluções, uivando qual anjo caído aos nove círculos infernais : " quero comer uma buceta... quero comer uma buceta... quero comer uma buceta... quero comer...".
II) As Indagações
Pois bem. Admitamos que efetivamente eu vá acabar comendo uma buceta. E aí? Pelo pouco que eu sempre soube, e pelo menos ainda de que me lembro, comer uma buceta, assim como qualquer outra iguaria, demanda uma série de procedimentos, carece-se de toda uma pompa e circunstância para se degustar uma melosa.
Há de se saber o talher adequado (se para carne, se para peixe, ainda que algo me diga que, à moda nipônica, seja de bom grado comê-la com pauzinho), as entradas (a meu ver, não podem ser nem muito suaves, para não decepcionar, nem muito acondimentadas, para não assustar), os molhos (parece-me de vital importância que esteja encharcada em molhos, porém, não o vermelho), os pratos que acompanham (creio que um jiló bem enrugado e roxinho seja o ideal) e o vinho (que vinho que é bom?).
Há toda uma etiqueta. Não haverá tempo para me inteirar de nada disso : vai ter que ser no instinto.
Outra coisa : é sabido que várias pessoas são alérgicas aos mais variados tipos de alimento - leite, ovos, mariscos, alho, tomate, abacaxi... Quem garante que eu não seja alérgico, ou tenha, depois de tanto tempo sem comer, desenvolvido uma alergia à fedegosa? Quem garante que eu esteja livre de erupções cutâneas e até mesmo de um choque anafilático? Talvez, a exemplo das injeções de penicilina, fosse melhor eu testar em pequenas porções para ver se não ocorre reação. Mas buceta ou se come a peça inteira ou não se come nada. Vou ter que arriscar.
E ainda : será que a menor, no entanto, a mais interessada das partes, irá reconhecer como alimento a encrespada? Será que o olfato, o tato, o paladar do "menino" irão se aguçar novamente frente a um prato há tanto negligenciado? É sabido também que as coisas, ao longo do tempo, se modificam, evoluem... Terá a buceta ainda o mesmo aspecto de dantes? Ainda mais agora com essa coisa dos transgênicos, sabe-se lá...
III) A Decisão
Tá certo! Tá certo! Vou comer uma buceta!
IV) Os Preparativos
Primeira providência : arrumar uma buceta! Tarefa que me pareceu fácil na teoria e facilidade essa que veio a se confirmar na prática. Já há algum tempo, uma vizinha do prédio (21 aninhos) vem me cercando e há quase um mês, através do porteiro do edifício, enviou-me seu telefone pedindo para que eu ligasse. Semana passada, eu liguei. Ela veio aqui no Covil do Azarão duas vezes durante a semana e pronto : tudo certo para o sabadão à noite.
Buceta conseguida, meia viagem percorrida. Vamos, então, cuidar do resto.
Camisinhas. Corro a verificar o estoque de camisinhas. Quatro. Tá bom, tá bom. Mais que o suficiente, inclusive. Opa! Tão com a validade vencida. Vou ter que sair para comprar. E como eu estava desatualizado em relação às novidades desse setor!!! Há de todos os tipos e para todos os gostos e perversões.
Camisinhas com sabores : chocolate, menta, uva, laranja, kiwi, galinha caipira, doce de leite, banana (óbvio)... Tem até em versão dietética (é verdade!); vai ver que é para xavascas hiperglicêmicas. Passei batido por essas. Tem também as multicoloridas. Mas eu só quero comer uma buceta e não dar uma festa de aniversário. E as com mensagens impressas? "Te adoro, te venero do mais profundo recôndito do meu coração", ou, para os menos favorecidos anatomicamente, simplesmente "te amo". Mas eu só quero comer uma buceta e não alfabetizar, ensinar a fazer separação silábica ou análise sintática. Ignorei essas, também. Camisinhas com enchimento. Confesso que titubiei frente a esse inovador recurso tecnológico, mas acabei resistindo. Camisinhas fosforescentes para se usar no escuro : o pinto deve ficar igual a uma espada de Jedi. Camisinha com AM/FM, com ducha quente e gelada, com a cara do Brad Pitt, camisinha autolimpante etc etc etc. Acabei optando pela convencional mesmo.
Agora, distribui-las em pontos estratégicos. Uma dentro do livro do Luis Fernando Veríssimo, em cima daquela mesa ao lado do sofá, caso a coisa já pegue na sala; outra dentro da talha, caso role na pia da cozinha; uma terceira embaixo do colchonete, caso ela seja mais afeita a uma luta greco-romana; e duas (não custa ser otimista) dentro de um livro do Manuel Bandeira, no criado-mudo ao lado da cama, caso o negócio se dê mais na base do papai-e-mamãe.
Não custa ainda dar uma reforçada na parte física, mas aí não tem novidade. Paçoca de rolha, ovo de codorna, taffman-E...
Etapa final : testar o equipamento. Socar um punhetão pra testar a parte hidráulica, ver se o encanamento não tá entupido ou vazando, se tá mantendo a pressão. É, não tá assim nenhuma Brastemp, mas tudo bem. Afinal, o que é a vida a não ser uma série de desilusões e gametas desperdiçados em bronhas, poluções noturnas e gozadas fora?
Agora é esperar. E torcer para que ela não tenha pelo na teta.
V) O Ato
No início, devo admitir, o "estômago", pela longa abstinência, estranhou um pouco o tempero. Mas depois repeti o prato, pedi a sobremesa e ainda fiz um lanchinho antes de dormir. Só sobrou a camisinha dentro do livro do Veríssimo.
As possíveis consequências (?)
Passará, o Azarão, depois desse banquete de buceta, a ver a vida com outros olhos? A angústia lhe pesará menos às costas? O céu lhe parecerá mais azul? O papel higiênico lhe será menos áspero? Com certeza, não!!! Continuarão como companheiras as inquietações, as exasperações e as já clássicas depressões. Mesmo porque, hoje em dia, felicidade é um sério indicador de um baixo QI.
Deprimido, sempre! Mas de pau em riste! O que, convenhamos, já é alguma coisa.

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2 Comentários

  1. Azarão, meu velho...belo texto! Agora, eu presenciei algo parecido nas Guerras Secretas, lá em Araraquara. Me lembro de você, embriagado, agarrado às grades da janela, soltando um grito e dizendo..."eu quero um...". Aliás vivem me perguntando daquelas Guerras Secretas e você, quando passar essa preguiça, bem que poderia conta-las no seu blog. Agora...foto que é bom e ficou de me mandar...nada!!

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    1. Pois é, nas Guerras Secretas, o que eu queria comer era um cu... e continuo querendo até hoje.
      Qaunto à foto, amanhã mesmo a escaneio e envio.
      Contar sobre as Guerras Secretas? Nem pensar! Aí, elas não seriam mais secretas. Delas, só saberão quem as lutou, quem bravamente as lutou!!!

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