Os 300 Sortudos da SEE

Sou funcionário público da área que hoje, por desplante, por sarcasmo, por canalhice mesmo, convencionou-se chamar de "educação", e por muito tempo evitei fornecer ao Estado um endereço eletrônico meu, resisti em dar ao onipresente, onisciente e onipotente Sistema uma maneira de me achar fora do espaço físico de meu trabalho.
Meu trabalho não é virtual, é presencial, com horários rígidos de chegada e saída, com direito à falta-aula por mais de 5 minutos de um eventual atraso, bem diferente das outras funções da escola - secretários, coordenadores, diretores -, que podem chegar e sair (ou, pelo menos, chegam e saem) na hora em que bem entenderem ou julgarem necessário (mas, afinal, quem vigia os vigilantes? Quem põe falta para os guardiões do livro-ponto?). Logo, todo e qualquer aviso ou comunicado deveria me ser passado em local e horário de trabalho. Sem essa do profissional invadir minha vida pessoal. Quero entrar em minha caixa de e-mails e dar de cara com mensagens de amigos, com power points de mulher pelada, não com avisos do trabalho.
Evitei ao máximo, acreditem, fornecer um e-mail meu ao Estado. Aconteceu que, há coisa de 2 ou 3 anos, no recadastramento funcional anual obrigatório, realizado no mês do aniversário, e do qual dependem os recebimentos dos pagamentos subsequentes, um novo item passou a ser campo de preenchimento obrigatório : um e-mail pessoal. Sem o qual o recadastramento não é concluído, fica em aberto, e o salário não cai na conta já no mês seguinte.
Coação aceita, resto de alma vendida, passei a receber regularmente comunicados do patrão : data-limite para isso, data-limite para aquilo, e informações sobre os mais variados cursos de capacitação profissional oferecidos ao docente pela Secretaria Estadual de Educação (SEE). Todos eles, os cursos, inúteis. Para inglês ver. Para o Banco Mundial ver. Tudo blá-blá-blá (eu não te amo). Tudo encheção de linguiça peidagógica. Tudo masturbação de defunto. Inócuos, para dizer o mínimo. Não se prestam nem a placebos acadêmicos. Apenas para gerar certificados e dizer que o governo investe na formação continuada do professor.
A farsa é a mesma em todos os patamares. São emitidos diplomas de Ensino Médio para jovens semianalfabetos e certificados de cursos sem teor nem substância para os docentes.
Ontem, foi um pouco diferente. Ontem, não houve informe de urgentes pendências nem de dispensáveis cursos. Entrei em minha caixa de e-mails e dei de cara com a seguinte mensagem : Sorteio de livro. Abri e estava lá : Olá Servidor da Educação! Conheça os 300 mais sortudos da SEE. Já foram sorteados os 300 livros da escritora Leandra Zanqueta, que doou aos servidores da Educação o livro ‘Diálogo sobre Etiqueta no Facebook’, que foi lançado agora no Brasil. Todos os servidores da Educação puderam participar. O sorteio foi feito hoje, às 15 horas, por meio do site Sorteador. Para conhecer os ganhadores acesse a Intranet Espaço do Servidor.
Pããããta que o pariu!!! Que sortudos, hein? Que puta livrão, hein, Diálogo Sobre Etiqueta no Facebook!
E eu que cheguei a pensar, antes de abrir o e-mail, que o Estado pudesse estar a sortear, sei lá, a prosa completa de Machado de Assis, ou a poética do Bandeira, ou a Origem das Espécies do Darwin, ou ainda coleções de livros didáticos... Porra nenhuma. Etiqueta no Facebook. E me senti até comovido com a benevolência da autora, Leandra Zanqueta, doou aos servidores da educação... Que bom coração! Que incremento sem precedentes para o cabedal de conhecimentos do professor paulista!
Estará o Estado a fazer troça de seu professorado ao presenteá-lo com tal compêndio de futilidade e falta do que fazer? Estará a menoscabar da capacidade intelectual daqueles que empossou como mentores das novas gerações?
Nada disso! O Estado sabe bem o gado que ele toca. Sabe muito bem do nível dos professores que, de uns 10 anos para cá, ele atrai, propositalmente, para as salas de aula com o salário miserável que paga. 
O Estado não está a zombar das novas levas docentes ao sortear o citado "livro"; pelo contrário, está é a fazer um agrado para seu quadro docente, um mimo para os seus comandados, um agradecimento à sua estrondosa reeleição.
Repito, o Estado conhece muito bem o rebanho que tange. Sortear Machado de Assis para professores de português iletrados, "formados" em cursos a distância? Sortear Darwin para professores de biologia que creem em Adão e Eva?  Conheço um professor de biologia que é adventista do sétimo dia, outro que é testemunha de Jeová, um de Geografia que é evangélico.
Diálogo Sobre Etiqueta no Facebook é mesmo o máximo que seus entendimentos podem alcançar. E também o que lhes pode ser de mais "útil". Há tempos - e bota "tempos" nisso - que não vejo um professor com um livro em mãos, muito mal o didático de sua disciplina (eu, confesso tristemente, já fui leitor mais assíduo, hoje falta-me tempo, mas ainda assim me imponho, nem que seja de madrugada, a leitura obrigatória de dois livros mensais).
Só o que se vê nas mãos dos novos docentes (e nas de muitos dos velhos, também) é a porra do celular, smartphone ou como quer que chamem a essas estrovengas. 
E o que eles tanto consultam em seus oráculos eletrônicos? Leem as notícias do dia, pesquisam novos textos de suas disciplinas? Porra nenhuma. Ficam o tempo todo no facebook e, agora, no tal whatsapp.
Invariavelmente, chego às 7 da manhã na escola e já tem professor a ocupar os computadores da sala dos professores. No facebook. Computadores públicos, que são (seriam) disponibilizados apenas para atividades ligadas à prática docente. Pois o sujeito chega na escola, ainda limpando as remelas, e vai usar um computador público para assuntos particulares. E mesmo os que se utilizam de seus próprios computadores e celulares para acessar o "face", fazem-no pelo wi-fi da escola. Não há mais a menor distinção entre o particular e o profissional por parte da maioria dos novos docentes (e por muitos velhos, também, repito), seja em sala de aula, seja nos corredores da escola, seja na sala dos professores. Talvez porque não haja mais a parte profissional. 
E o que tanto fazem no facebook? Fica um cheirando o peido do outro! Um idiota coloca lá uma besteira e mil idiotas curtem e cutucam. Vai um cutucando o cu do outro e cheirando o dedo. Talvez venha disso a necessidade de uma certa etiqueta para o facebook, regras e maneiras corteses de bem cutucar o cu alheio, sem ofender. E o whatsapp, então? Noventa por cento do que já vi ser enviado são fotos de pinto, de caralhão!
Diálogo Sobre Etiqueta no Facebook é, sem sombra de dúvida, o melhor presente que o Estado pode ofertar aos seus professores. E ainda tem gente que reclama do Alckmin...
E tem mais : o sorteio não foi realizado aleatoriamente entre todos os professores do Estado, não foi extensivo a todo o universo docente paulista; os livros foram sorteados apenas entre os professores que se inscreveram para ele. Sim, o cara se inscreveu para concorrer ao Diálogo Sobre Etiqueta no Facebook.
E foi mais disputado que vestibular pra Medicina. Pããããããta que o pariu!!!
Abaixo, a preciosidade que não pode faltar em nenhuma biblioteca que se preze. Parece que até as bibliotecas Britânica, a British Library, e a de Coimbra encomendaram uns exemplares; para colocá-los lado a lado, respectivamtente, com os originais de Shakespeare e James Joyce e os manuscritos dos Lusíadas.
E o professor paulista ganhou-o, de graça! Que sorte!!!

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3 Comentários

  1. Não tenho facebook e acho um porre a simplificação da linguagem ali escrita (digitada). Por exemplo, "kkkk", para demonstrar que se está rindo de alguma coisa. Babaquice pura. Então, um livro sobre etiqueta no facebook deve ser uma coisa "importantíssima" mesmo. Deveria ter, por exemplo, uma sugestão de se digitar o texto, a resposta ou o cacete que seja em um editor de texto, passar um corretor de ortografia, para só então publicá-lo. Ou então, relacionar expressões de uso extremamente condenável, do tipo "é nóis" ou "tem que ri". Enquanto isso, os Machados de Assis, Os Rubens Bragas, os Fernandos Pessoa, os Márcios de Souza ficam lá, quietinhos, à espera de que alguém se lembre deles.

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  2. Só para provocar... Kkkkk, pensei q o email tinha me sido enviado por engano. Não me inscrevi em merda nenhuma da See. Amei o texto. Quando li o email falei mentalmente: Enfia esse livro no cú!

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    1. Quando vi o e-mail, também achei que eu tinha tido o azar de ter sido contemplado com essa preciosidade.
      E aí, vem pra Ribeirão nessas férias?

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