Ligeira Crônica Solar (3)

Férias. O que em nada altera o seu período de sono, de desligamento do mundo, de paz. Sempre teve muito poucos períodos de paz. Seja dia útil, inútil, segunda-feira, sábado ou domingo, dia santo ou profano, ele sempre dorme pouco, sempre é ejetado cedo da cama, tanto faz se se deita às 20h ou às tantas da madrugada.
Deficiência de melatonina, o hormônio que induz a sonolência e promove a transição entre a vígilia e o sono, a nossa versão neuroquímica da areia soporífera de Sandman, o nosso João Pestana? Nada disso. Nada tão bioquímico ou filosófico. A Vida, simplesmente - em toda a sua complexidade. A Vida sempre arrumou jeito de dar os olhos dele - fatigados e natimortos - à luz, pari-los à ainda quase luz da manhã, luz de abajur de peixe abissal. A Vida sempre arrumou maneira de pôr pulgas e percevejos no sono dele (e, às vezes, até o Gilliard); por zombaria, escárnio, ou sádica diversão, ou meramente por falta do que fazer da vida.
Férias. Ele se põe de pronto antes do cocoricó do rádio relógio, antes que qualquer outro da casa. 
Infunde e coa o café - arqui-inimigo de Morpheus -, acorda a esposa, abre a porta entre a sacada e a sala, acorda e alimenta os gatos, prepara o leite achocolatado, acorda o filho. Esposa sai para o trabalho, leva consigo o filho, reiniciaram-se as atividades da escolinha.
Férias. Fica sozinho. Sozinho, mas não ainda em férias, em ócio. Que, para ele, férias é ócio, é inatividade, é lagartear. Vai ao mercado, à quitanda, à padaria, ao banco, limpa a casa, apronta a comida do dia, cumpre rapidamente - não obstante, com muita eficiência - com os rituais da Vida, reza, niilista dissimulado, a cartilha da Vida, presta suas reverências à Ela, seus salamaleques, presta-Lhe seu tributo, sua submissão, infla o ego da Vida, para que Ela, ao menos nas férias, dê-lhe momentos para viver. Terá duas ou três horas.
Senta-se à sacada, liga o toca-CDs à extensão, escolhe aleatoriamente, feito um periquito de realejo, um CD (todos piratas) de sua coleção de quase duzentos, acondicionados em uma caixa de tênis, pega das palavras cruzadas, coloca a contragosto os óculos, usa-os há dois anos, o viagra para suas vistas broxas, e se põe a relaxar.
Falta algo. Decide, então, adiar a execução, marcada para as 21h do dia, das quatro latas de cerveja a aguardar no corredor da morte do congelador. Escuta Sérgio Sampaio, completa uma Cruzada, entorna uma lata; Ângela Ro Ro, um Duplex, e mais meia lata; Alcione, acende um incenso de canela, uma Sem Diagonal, mata a lata.
Observa a rua dez metros abaixo, o mundo não em férias. Carros passam em profusão. Passam mais carros que gente. Mais carros que pássaros, que cachorros, que ratos, que Testemunhas de Jeová. E quando, eventualmente, passa uma gente, nem é gente, é organismo a carregar telefones celulares, smartphones, i-pads, i-pods, a hipnotizá-los os olhos, a abafarem-lhes os ouvidos, a vibrar-lhes no cu. E quando passa gente, nem é mais gente, são vetores da praga tecnológica, arautos da Matrix, são Aedes Aegyptis a transportar a dengue, barbeiros a fazer carreto para o Trypanossoma, porcos choferes de praça para a tênia. E quando passa gente,  nem é mais gente, são eletrodomésticos, utilitários.
Escuta Arnaldo Brandão, gabarita um Diretão, deslacra mais uma lata; Capital Inicial, Sudoku, tiro de misericórdia na terceira lata. Vontade de mijar,  urgência, em verdade; que nada na vida é vontade, sim urgências. Deságua no vaso de boldo. Nitrogênio. Nutriente. Que lhe retornará em forma de chá ou macerado, quando seu fiel fígado, em dias de preguiça (ou de férias) resolver não dar conta do batente.
Escuta Adoniran, uma Silábica, abre a quarta e última lata; Raul Seixas (óbvio), uma Temática, e fim da última lata, e nem é meio-dia. Mune-se, então, de generosa e quase pornográfica dose de whisky, sem gelo, paraguaio legítimo fraternalmente presenteado por velho e fiel amigo. Ergue o copo contra o Sol, a maremotear o oceano primordial âmbar que é seu conteúdo, confronta o Sol, ergue um brinde à Via-láctea, às nebulosas, aos buracos negros, ao Big Bang. Emborca tudo de um só gole.
Vai para a cama - ainda desarrumada (ou arrumada ao sono) -, a janela do quarto que não foi aberta, o ar que não foi trocado, o colchão sabendo a roncos, a apnéias, a sonhos e pesadelos, a ereções involuntárias e desperdiçadas. Deita-se. Dormir. Nem que sejam uma ou pouco mais horas. Deita-se. E, lógico, não adormece.

Postar um comentário

0 Comentários