Pequeno Conto Noturno (36)

- E ainda falta muito para se aposentar?
- Nem faço as contas. Mesmo que as soubesse fazer, não as faria. Não gostaria do resultado.
E Rubens vira o copo, toma um, dois, três goles consecutivos do gim trazido por Celina. Já tomara gim antes, algumas poucas vezes, há muito tempo, nunca foi de suas preferidas. Lembrou que o gim lhe parecia aquelas colônias pós-barba coloridas, que ficavam em enormes vidros nos antigos salões dos antigos barbeiros, ao lado da navalha e do gral em que se fazia a espuma de barba. Com a garganta em brasa e a lhe xingar de filho da puta, constatou que ainda lhe parece.
- Que pena - segue Celina - que você não se encontrou em sua profissão...
- Eu nunca me encontrei em nada. Na profissão, não seria diferente.
- Deixa de fazer tipo, Rubens. Duvido que você tenha sido sempre esse cara amargo, descrente, desesperançado. Você já deve ter gostado de algumas coisas na vida.
Diz isso, pensa Rubens, porque nunca viu as fotos de minha infância, sobretudo a de um pôster, quando de meus 7 ou 8 anos. Mas Rubens opta por não entrar em detalhes, encurtar a conversa de psicanalista da madrugada. Toda mulher tem quê de psicanalista. Sorte - delas - terem a buceta.
- Sim, já gostei.
- Tá vendo, só, você já encontrou em algo, ainda que temporariamente.
- Nunca me encontrei no que eu gostava. Me escondia atrás.
- ????
- Pode parecer uma sutil ou mesmo inexistente diferença, mas ela é gritante. O que eu gostei sempre me serviu de máscara, de escudo, nunca de ninho, de remanso, de lápide a proclamar um dever cumprido num túmulo à sombra de um cipreste. 
- Acho que o gim está forte demais para você...
- Sempre usei as poucas coisas de que gostei - o que é muito diferente de acreditar nelas, se identificar com elas, ou se dedicar a elas - para me conferir uma aparente normalidade, para evitar perguntas, para passar, tentar passar, despercebido pelas pessoas. As pessoas não gostam das pessoas que não se identificam com nada, que não põem uma coleira em si mesmos, que não se autopirografam com um ferro de marcar gado. Não pertencer a nada significa não poder ser manipulado, comprado, chantageado, significa que nada lhe pode ser tirado. Isso incomoda, dá medo nas pessoas.
- Não se encontrar é ser feliz? Dá aqui esse copo, que vou fazer um café forte pra você tomar, injetar na veia.
- Acho que não se encontrar é ser livre, inclusive para pensar que não é importante ser feliz, que a felicidade é uma merda, ou pelo menos sua busca a todo custo, descabida, que a felicidade não existe. As pessoas me viam fazendo coisas e pensavam que eu havia me encontrado, me identificado, me enquadrado, isso tirava suas atenções de sobre mim. Serviram para isso a escola, depois a faculdade, minhas coleções de livros, discos e gibis, meus amigos, o meu primeiro amor e os dois ou três outros subsequentes. Gostava deles, gostei deles, mas nunca me encontrei neles, sempre me escondi atrás, ou por sob. Acho que foi nisso que sempre me encontrei, a que sempre me dediquei, me esconder do mundo.
- E a bebida, Rubens? Gosta dela, se encontra ou se esconde atrás dela?
- Eu fujo, através da bebida eu fujo.
- E no dia em que você se cansar de fugir, de correr?
- Tenho boas pernas.
Celina ri, e desiste. Enche o copo de Rubens.
- Falando em boas pernas - Rubens mudando totalmente o rumo da conversa -, não acha que está na hora de você abrir as suas de novo?
As pernas de Celina se abrem, um vasto tufo de pelos revoltos se revela, despudorado. Ela os deixara de aparar a pedido dele.
Rubens se abaixa e mete o nariz por entre os pentelhos. Cheiro de secreção nova, a preparar terreno para a nova foda, e de secreção velha, seca, azeda, grudada, da foda anterior. Rubens sobe a língua, cu, períneo, uma navalha a fender e a separar os pequenos e grandes lábios de Celina.
- Você gosta dela, né? - Celina, em fala entrecortada.
- Me escondo nela.
Celina cruza as pernas em torno da cabeça de Rubens, à altura de suas orelhas, aperta-o e o puxa mais para si. Puxaria-o para dentro, para sempre, possível fosse. Rubens está absorvido, fagocitado pela buceta de Celina. Cego, surdo e mudo. Isolado do mundo. Como sempre gostou.

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6 Comentários

  1. Adorei a conversa de psicanalista da madrugada. As mulheres (qualquer uma) são mestres nisso. Meu velho, senti falta dos votos de feliz natal no blog. Forte abraço meu amigo.

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  2. Por obséquio, mais contos noturnos por favor, uma série que não perco um post.

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    1. Pois é, todo mundo gosta de uma putaria. O ritmo dos pequenos contos está mais lento. Acontece que antes, bem antes, eram baseados em fatos reais; hoje, são pura ficção;
      abraço.

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  3. Interessante.
    "- E no dia em que você se cansar de fugir, de correr?
    - Tenho boas pernas." Alguma coisa me lembrou do livro O Casamento - Nelson Rodrigues (um dos meus autores favoritos).
    "J"

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