Pequeno Conto Noturno (35)

- Mas você sempre foi tão racional...
- Exato.
- Exato não é a mesma coisa que racional?
- Falei exato no sentido de que você está correto, de que está certo em dizer que eu sempre fui racional, mas, de qualquer forma, não, exato não é a mesma coisa que racional.
- ???
- Razão é proporção, é dosagem, é buscar o justo equilíbrio, que não é definitivo, que é periclitante; a grosso modo, razão é uma conta de dividir, que nem sempre é exata, aliás, na maioria das vezes, é uma sequencia infinita, periódica ou não, que estende a indefinição por toda uma vida, que estende o cuidado em manter uma constante ponderação. Razão não é a medida, é a justa medida, é o fio da navalha. Razão é o equilibrista em cima do muro, não o chão.
O balconista, interlocutor de Rubens nas madrugadas sem bucetas, traz outra dose dupla para Rubens, sem gelo, e também uma para si próprio; a tal hora, beber no serviço não dá demissão por justa causa para ninguém, justiça houvesse, ninguém teria que trabalhar a tal hora, nem beber, nem ficar insone.
- E onde foi que a coisa zangou dessa vez? -, pergunta o balconista.
- Num engano de razão. Quando conheci Malena, ela me pareceu a melhor proporção possível entre beleza e loucura, a cuba libre mais bem dosada que eu já havia tomado.
- Ainda não entendi, onde foi que você se fudeu?
- Num erro de cálculo, meu caro, na mais simples das operações matemáticas.
- ???
- Superestimei a beleza de Malena - e Rubens emborca tudo, uma escaldante dose dupla de rum enfiada goela abaixo -, e subestimei a sua loucura.
- Deixa ver se entendi, você pensou que tava comendo uma doidinha gostosa e tava era traçando uma mocreia surtada, foi isso?
- És um verdadeiro matemático, meu caro - e Rubens faz deslizar o copo vazio em direção ao balconista, que o enche, mas por precaução, quem sabe consideração, adiciona umas atenuantes pedras de gelo.
- E comeu ela muitas vezes? - quer saber o balconista.
- Muitas. E tava tudo dentro da normalidade, até o dia em que... comi o cu dela.
O balconista gargalha, alto e com gosto.
- Você e seus cus... puta que o pariu.
- Quando comi o cu dela, no dia seguinte, ela queria me acusar de estupro, saiu gritando sua intenção pelo corredor do prédio, pela portaria, berrava que iria à delegacia da mulher, que na cadeia é que eu ia saber a dor de um cu comido, essas coisas.
- Mas você não deu uma forçadinha, não?
- De jeito nenhum, ganhei aquele cu como ganhei todos os outros até hoje, na pura lábia, e depois de muitos bons tratos à buceta. Trate bem uma buceta e ganhará um cu, dificilmente falha.
O balconista ri de novo.
- E aí, como você livrou seu cu dessa?
- E aí que a demente levou a grana que eu tinha na carteira, uma cafeteira elétrica e a televisão.
- Tudo em troca do cu?
- Me saiu caro, esse cu.
- Prum cu, sim; para um acordo de um processo de estupro, até que saiu bem barato.
- Está certo outra vez, meu caro - e Rubens entorna metade do copo.
O dono do bar, sem dó nem piedade, decreta o fim da noite, acende as luzes, convoca os bebuns remanescentes a pagarem suas contas no caixa e dá ordens aos garçons para escancararem as portas, deixar entrar a realidade.
Rubens vira o último gole e sai sem se despedir do balconista, sair sem se despedir - ou chegar sem cumprimentar - é a despedida clássica de Rubens.
- Queria, de vez em quando, me fuder desse jeito - pensa em voz alta o balconista, casado há 18 anos com a mesma mulher.

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