O Mais Belo Suicídio

Quem disse que um suicídio não pode ser algo belo? Ou, pelo menos, narrado de forma bela? Chico Buarque, óbvio, insuperável como ele só, fez isso, magistralmente, em definitivo, em Construção. Ou você, fã de Chico como eu, que já cantarolou Construção um sem número de vezes, nunca percebeu se tratar de um suicídio? Pois é sobre o que a canção versa. O texto é todo de desprendimento e despedida.
O suicídio de um operário cansado do cotidiano tijolo com tijolo num desenho lógico, do sábado sem descanso, do feijão com arroz, de beijar sua mulher como se fosse a única.
O suicídio de um operário que, engenhosamente, disfarçou seu ato em um tropeço involuntário, fê-lo parecer um acidente de trabalho, para que ele próprio não fosse julgado covarde, para livrar sua família de qualquer sentimento de culpa por sua cabal decisão.
E, ao menos, por infinitesimais divisões de tempo, flutuar no céu, ser um náufrago, ser um bêbado princípe, não ser uma máquina, ser um pássaro. Dizem que nada explica o suicídio, menos ainda o suicida. Explica, sim : o desejo de ser pássaro.

Construção
(Chico Buarque)
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público.

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.

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