Que Fossa, Hein, Meu Chapa, Que Fossa...(21)

Eu contava com 16 anos quando ouvi O Mundo é um Moinho pela primeira vez, na Rádio Regional FM, de Ribeirão Preto - em um outro dia, falo mais sobre essa estação de rádio e sobre o seu trágico destino.
Nunca tinha escutado nada do tipo. Conhecia Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento, Jair Rodrigues e outros, através do velho toca-fitas do carro do meu pai, que sempre os punha a tocar durante nossas viagens. Mas, repito, nunca nada parecido havia me chegado aos ouvidos.
Frases como "em cada esquina cai um pouco a tua vida", decididamente, não era coisa comum de se escutar. O que dizer, então, quando fui posto cara a cara com o cruel realismo do verso "de cada amor, tu herdarás só o cinismo"? O amor cantado por Chico, Tom,Vinícius, e mesmo pelas iniciantes bandas de rock dos anos 80, era amor muito mais leve, mesmo quando dava errado. Quando o intérprete, que eu nem sabia quem era, finalizou com o "abismo que cavaste com teus pés", eu arrepiei até os cabelos que mal tinha no cu. Foi como se eu próprio tivesse despencado para dentro de um abismo, o abismo do novo.
Foi um soco no estômago do garoto que só ouvia as dores de amores do pessoal da bossa nova e dos roqueiros de bermuda do Baixo Leblon e do Arpoador. E não daqueles socos no estômago que simplesmente nos dobram e nos jogam ao chão pela falta de ar; sim daqueles cujo punho nos atravessa a barriga, agarra nossos intestinos e os puxa para fora.
Queria, precisava ouvir de novo aquela música, nem o nome eu lhe sabia, ouvi-la mais uma vez, e outra, e outra, até decorá-la por inteiro.
Na época, para o bem ou para o mal, não havia a internet, nem poderíamos supor que um dia ela haveria. Se ela existissse, seria fácil, bastaria eu colocar um ou dois versos da música no Google. Ele me diria o nome da canção, o compositor, o intérprete, forneceria-me a letra e um link para baixá-la. Em pouco mais de cinco ou dez minutos, eu estaria de posse da música. Fácil e rápido. E chato, chato pra caralho, se querem saber de verdade o que eu acho.
Imediatamente, liguei para os estúdios da rádio. Depois de várias tentativas - o telefone sempre dava ocupado -, consegui falar e perguntei que música era aquela que havia sido tocada, que falava de moinhos e ilusões reduzidas a pó. Soube que era do sambista Cartola e que se chamava O Mundo é um Moinho
Queria adquirir o disco, o LP. O programador me falou que era de um disco antigo, de 1970 e pouco, provavelmente já fora de catálogo, ou, no mínimo, muito raro de se achar nas lojas de discos. 
Perguntei, então, se não seria possível tocá-la novamente, para eu gravar em fita cassete (as boas e velhas fitas BASF), de preferência na íntegra, sem aquelas propagandas das rádios comendo o início e o fim das músicas.
O programador disse que não seria possível tocá-la de novo naquele mesmo dia, e nem nos dois dias subsequentes, a programação já estava toda feita, mas que na sexta-feira, no horário de seu programa, ele a incluiria de novo, só não podia me precisar exatamente a hora. Agradeci pra caralho o sujeito e, na sexta-feira, pus-me de tocaia ao lado do meu finado system 3 em 1. Foram quase quatro horas de espera, mas ela veio, inteira, sem propaganda nem no começo nem no fim.
Escutei-a até a fita desmagnetizar. Não conhecia Cartola, mas já conhecia Augusto dos Anjos, e  na primeira vez em que ouvi O Mundo é um Moinho, muitos de seus versos, na mesma hora, me lembraram do pessimismo pragmático e adorável de Augusto dos Anjos, e me lembram até hoje.
Cartola, dizem, era um semianalfabeto, e compôs O Mundo é um Moinho, As Rosas Não Falam, Autonomia, Cordas de Aço, Tive, sim, Disfarça e chora, A Sorrir, e mais uma batelada de obras-primas. O lirismo triste e levemente amargo de suas letras, arrisco-me em dizer, por muitas vezes, supera a erudita poesia do cultissimo Vinícius de Moraes, no mínimo, equipara-se a ela.
Hoje, os sertanejos, dizem, são universitários, e (de)compõem Ai, se eu te pego.
Isso sim é de deixar qualquer um na fossa. E que fossa, hein, meu chapa, que fossa...
Para finalizar, se alguém que ler essa postagem ainda não tiver escutado O Mundo é um Moinho, faça-o, e aproveitando as facilidades da internet, pesquisem outras músicas desse grande compositor.
O Mundo é Um Moinho
(Cartola)
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

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2 Comentários

  1. "O Mundo é um moinho" meu caro...

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    1. Pãããta que o pariu!!! Que erro fudido, onde estava com a cabeça? E eu ainda escrevi a mesma merda várias vezes. Obrigado, meu caro. Tens a eterna gratidão do Azarão.

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