E Eu Que Pensei Que Só Teria a Companhia Dos Vermes Após a Minha Morte...

Segunda-feira, 07:00 h da manhã, pátio de uma escola grande (que um dia já foi uma grande escola) para alunos do ensino médio (que já foi o excelente Colegial, que já foi o lendário Científico, Clássico e Normal, boa época em que, verdadeiramente, separava-se o joio do trigo).
Uma antessala do saber, o pátio, diriam os mais poéticos, suporiam os mais ingênuos, acreditam ainda os idiotas idealistas - existem idealistas de outro tipo? Vou me arriscar na redundância.
Antessala do saber é o cacete!
Um mercado de peixe, um almoço de domingo de família italiana, uma zona de guerra (perdida); e só não digo uma zona de zona, de zonão, porque até no puteiro há quem mande no recinto, até no puteiro há regras válidas, há uma hierarquia a ser obedecida. Não obstante, não deixa de ser um local de tolerância, a escola de hoje.
Antes, atravessar o pátio rumo à sua cátedra e ver os alunos uniformizados e organizados em filas, prontos para mais uma jornada produtiva em sala de aula, alguns mesmo com o caderno na mão a dar uma última revisada para a prova do dia, ou furtivamente a terminar a tarefa que não fez em casa, a demonstrar, de qualquer forma, algum interesse ou preocupação para com sua atividade discente, dava ao professor elementos de estímulo para romper a inércia da cruel segunda-feira.
Hoje em dia, quando atravesso o pátio, evito olhar para os lados, sob pena de, caso me arrisque a, não só não receber o necessário estímulo, mas, ao contrário, uma pesada bola de ferro agrilhoada aos pés, já pesados por si próprios, pelo tanto andar, pela idade, pelo tanto ser pés.
Não há mais filas, não há mais ordem, logo, nosso lábaro, que ostentamos estrelado, fica mutilado do progresso; não sou positivista, substituo a ordem, pois, por disciplina, não há mais disciplina, sem ela não há progresso.
Há turbas pelo pátio, tribos paleolíticas, turbilhões, emaranhados, maçarocas de alunos. Sim, muitos alunos, uma vez que regularmente matriculados e constando do sistema; estudantes de fato, poucos, cada vez mais raros. Aglomerados amorfos de autômatos, zumbis. Ciborgues conectados por fios às suas maquininhas insuportáveis - celulares, iphones etc. Ciborgues, sim. Zumbis cibernéticos, sim.
Porque quem vive conectado a fios, isolado do mundo em que vive, das duas,  uma : ou é um paciente em coma numa UTI, respirando através de aparelhos, ou é um ciborgue, vazio, sem personalidade, sem o menor conhecimento de si, sem vontade própria.
Tirem-lhes a abominável engenhoca e eles reagirão como um drogado sem sua heroína, reagirão como se parte de sua anatomia lhes fosse amputada, ou como se o diabo levasse suas almas. E é o que acontece na realidade. Arranque-lhes o celular e os alije de seus cérebros, dos seus eus.
A grande maioria, que engrossa a cada dia, transferiu seus cérebros para os chips dos celulares, suas personalidades (que mudam conforme trocam o modelo de celular que possuem), suas essências. Não demorará o dia, em que perguntado sobre quem é, o ser humano dirá, sou o motorola modelo x, sou o samsung modelo y, o Nokia modelo z, e assim por diante.
(Oh, Huxley, oh, Orwell, como me parecem desejáveis, hoje, as suas distopias, que tão terríveis me pareceram à epóca em que os li pela primeira vez.)
No mais das vezes, até por questão de sanidade, ignoro-os - os celulares e os seus animaizinhos de estimação, os humanos -, porém, às vezes, o grau de imiscuidade e promiscuidade entre eles é tão gritante que, pego desprevenido, acabo não desviando o olhar a tempo.
Segunda-feira braba e, só para começar o dia, caiu-me à frente a cena, das que eu presencei, mais tristemente emblemática do esvaziamento do ser humano, da sua relação doentia com a tecnologia e da sua total aniquilação como indivíduo, como ser particular.
Vi uma aluna concentrada em pressionar a testa de uma outra com seus polegares, a lhe espremer uma espinha ou um cravo. Nada de mais até aí, meio nojento, mas nada anormal. Mas ao passar mais perto da dupla, vi que o ato não se resumia apenas a isso. Enquanto a amiga tentava lhe extrair o cravo da testa, a outra filmava o ato com um celular, cinegrafava os dedos da amiga apertando sua fronte, aguardando o final feliz, quando o cravo espocasse para fora. E a dona do cravo já anunciava que mais tarde colocaria a operação no seu feicibúqui.
O segundo evento mais importante do dia daquela menina seria aquilo, um cravo espremido pela amiga; o primeiro, lógico, seria a postagem dele no feicibúqui.
Respirei fundo e segui. Duas primeiras aulas do dia, aula dupla numa sala de 2º ano de ensino médio. Fiz o controle de frequência e comecei a chamar os alunos para um visto na tarefa pedida há duas semanas. Duas semanas para que fizessem lá três ou quatro exercícios de sua apostila. Duas pessoas. Duas alunas apenas apresentaram a tarefa, uma simples tarefa à qual nem imputo a obrigação de estar certa, apenas a de fazê-la, pois à correção sempre procedo em seguida. Uma sala de 42 alunos matriculados, duas pessoas cumpriram com uma simples tarefa. Tal ocorrência não é exclusividade dessa sala em questão, tampouco de meu componente curricular, ela é recorrente na maioria das salas e com todos os professores.
Não escolhi ser professor, muito menos fui movido a isso por vocação. Aliás, desconfio muito do sujeito que se diz vocacionado para isso ou para aquilo desde a mais tenra idade. Acredito que sigamos uma inclinação natural e que as contingências, essas sim, é que vão traçando nossas rotas. As contingências nos põem um obstáculo aqui, tira-nos outro acolá, nosso mapa vai sendo desenhado, até que somos postos frente a uma situação, a uma possibilidade, à qual dizemos sim, ou recusamos.
Uma série quase que interminável de contingências me pôs de frente com a possibilidade de ser professor, e eu disse sim. Em parte porque já estava cansado de ver, nas outras profissões que havia exercido, e exerci um punhado delas, a estagnação das pessoas. O sujeito adquiria uma profissão, por exemplo, caixa de banco, e era isso o que ele seria pelo resto de sua vida, caixa de banco, e pior, o mesmo caixa de banco de quando começou, sem nenhum tipo de interesse em algum aperfeiçoamento de sua função, sem buscar nenhum tipo de incremento que o tornasse mais dinâmico e eficaz.
Acreditei que me tornando professor e trabalhando com jovens, com pessoas em formação e, supostamente, ávidas por novas informações e conhecimentos, eu conseguisse manter também a minha vivacidade profissional. Ao ter que atender a vontade do outro pelo novo conhecimento, eu também me manteria em incansável busca dele.
E até que foi assim. Durante um tempo, um curto tempo. De alguma forma, e por razões que nem tento mais desvendar ou enumerar, o desinteresse foi se instalando nos alunos, em menos de uma curta decáda, ele está enraizado, irremovível.
Hoje, não existe ninguém mais desinteressado pelas coisas do mundo que o cerca do que o jovem em idade escolar. Há ainda aquelas raras e honradíssimas exceções. Cada vez mais raras, cada vez mais insuficientes para manter vivos o ânimo e o propósito do professor, que de perguntas, e não só de perguntar, também vivemos.
E eu que pensei ter encontrado a pedra filosofal dos ofícios, a fonte da juventude laborial. E eu que pensei que só teria a companhia dos vermes após a minha morte...

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4 Comentários

  1. Certamente, você sabe que o problema não acaba aí... continua aqui no ensino superior e nos cursos de pós-graduação. O analfabetismo tecnológico e funcional é de se espantar, mesmo nas instituições de primeiro escalão. Confesso, não sou professor porque gosto... é apenas um encargo que tenho que aturar enquanto pesquisador.

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    1. Sim, sei. É o que nas ciências experimentais chamamos de propagação de erros. Um erro pequeno vai se propagando e se acumulando, chega um momento em que não tem mais o que ser feito.
      É triste.

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  2. Ver esses zumbis acoplados a seus a seus trens eletrônicos, no pátio, na sala, desinteressados de qualquer outra coisa, foi a maior fonte da minha angústia, pelo desperdício quase completo de gente. Mas isso daí tem um culpado-mor e cúmplices.
    Você me deu uma ideia para escrever um texto, obrigada!

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    1. E quando ele ficar pronto, gostaria de publicá-lo aqui, com sua autorização e dando-lhe os devidos créditos.
      Eu é que agradeço pelos comentários. É bom saber que somos lidos com atenção por alguém.

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