Síndrome de Asperger

Sou funcionário público. E concluo, depois de anos enfronhado no Sistema, que é o lugar mais próximo do ideal para mim. Sim, Sistema escrito com inicial maiúscula, da mesma forma que a maioria grafa deus. Para o funcionário público, o Sistema é o Onipresente Vigilante e Punidor.
O funcionalismo público é mão e luva para pessoas ou muito talentosas e geniais - alheias ao mundano e acima das relações sociais comezinhas -, pois nele têm tempo de dar tratos à bola paralelamente ao fácil e pouco serviço, ou para pessoas totalmente desprovidas de talento ou adjetivos - rasas a ponto de não se ajustarem aos mais simples rituaizinhos da vida -, pois nele são imbuídas de um cargo, um título, que lhes concede importância ilusória.
Não sei qual é o meu caso. E, sinceramente, procuro não vasculhar muito pela resposta. Basta-me a indagação. Respostas são chatas. Às vezes, demolidoras e decepcionantes.
Há uma terceira possibilidade. E gosto mais dessa. O Serviço Público faz as vezes daqueles antigos sanatórios para tuberculosos, ou dos leprosários. Só que é um remanso para os portadores da Síndrome de Asperger (SA), que recentemente descobri ter.
Basicamente, o Asperger tem horror, verdadeira aversão a qualquer quebra de sua rotina, considera uma mudança como uma invasão de seu mundo. Muitos classificam a SA como uma forma moderada de autismo, de encasulamento, onde não há prejuízo no desenvolvimento intelectual e da linguagem; alguns Aspergers, não raro, tornam-se professores universitários (querem melhor redoma que o ambiente restrito de uma universidade?)
Os portadores de SA, segundo a literatura médica, embora não tenham prejuízo intelectual, apresentam prejuízos de interatividade social, prejuízos na convivência com outras pessoas. Prejuízo? Que prejuízo eu posso sofrer por estar trancado em casa ao invés de pulando e berrando feito um idiota no meio de uma turba num show de sertanejo universitário? Nós, Aspergers, somos normais. Problemas, têm os outros.
O portador de SA, diferente do autismo clássico, não tem dificuldade alguma de se comunicar e interagir com o mundo. Só não gosta. 
Os portadores de SA, ainda continuando a lista de sintomas, desenvolvem padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades, cuja denominação, dada pela execrável psicologia, é Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Mais uma vez, cago pra esses merdas do psico-qualquer-coisa. Obsessivo para eles, bando de liberaizinhos de merda, queimadores de rosca. Para mim, padrões repetitivos de comportamento atendem por outros nomes : disciplina e método.
Os portadores da SA não têm prejuízo nenhum, em nada. Se eles não gostam da convivência em bando, qual o prejuízo em evitá-la? Se gostam da rotina, qual o prejuízo em preservá-la? Aliás, não entendo o porquê da rotina ser considerada indesejável. Para que roupas novas quando as antigas ainda estão usáveis, carro novo quando o velho ainda anda, cores novas nas paredes da casa quando a pintura velha ainda está intacta, móveis novos se os cupins ainda  não comeram os antigos? Tanto esforço dispendido na mudança para que se consiga o que já se tem, roupas, carros, móveis e paredes pintadas. E depois, nós, Aspergers, é quem somos os doentes? Preferimos gastar nossas energias em conluio e regozijo com nós mesmos.
Não sei se as pessoas dizem a verdade quando afirmam não gostar da rotina, ou se mentem com a intenção de parecer dinâmicas, jovens, modernas e descoladas; babacas, enfim. Em qualquer dos casos - ainda mais se forem adultas -, só revelam a incapacidade de amadurecimento que têm, a falta de uma personalidade solidamente estabelecida. Só o indeciso (o incapaz de decisão) pode ansiar tanto por mudanças. E depois, nós, Aspergers, é quem somos os doentes?
Eu verifico tudo antes de sair de casa, várias vezes, luzes acesas, ventiladores ligados, torneiras pingando, válvula do gás, porta da geladeira, janelas, ferro de passar roupa fora da tomada, se há água e ração suficientes para as gatinhas, e, muitas e muitas vezes, se tranquei adequadamente as portas. Eu não tenho TOC porra nenhuma, eu simplesmente não gosto de sair de casa. E ponto. Por isso, torno minha saída tão trabalhosa. Saio só para o básico e necessário. Levar o filho à escola e ao médico e ir ao supermercado, que comida e cerveja ao homem não podem faltar.
Qual o mal em gostar de sua caverna e se bastar como fonte da solução (ou não) de seus próprios problemas? Pura inveja dos que não se bastam. Daí, darem-nos a pecha de anormais. Pura aleivosia.
Por isso, achei-me no Serviço Público. Nele, a rotina é regra e é respeitada. Nele, chegamos todos os dias e temos a certeza do que vamos encontrar. Se bom ou ruim, é mero detalhe. O fundamental é a sua confortável constância. Não há surpresas, sobressaltos ou sustos. Eu nunca gostei nem de montanha-russa.
Vejam que escrita mais Asperger:

"Parece que recebo mais felicidade entre quatro paredes do que no meio das pessoas. Para mim, nunca foi difícil ficar sozinho. Sempre foi melhor. Era algo natural. Sou como esses animais que cavam buracos, é meu instinto. Quando estou só, recarrego a bateria, construo. Já fui deprimido, suicida, mas nunca fui um solitário. Ser só siginifica que outra pessoa pode resolver seus problemas. Eu precisava era de mim mesmo."

Quem? Charles Bukowski, o bom, velho e sujo Buk. Só podia ser.

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