É a Podridão, Meu Velho (9)

O bafio equatorial da noite,
Pegajoso e com notícias de coisas decompostas,
Feito veias esclerosadas
Ou manilhas de esgoto a céu aberto,
Traz à minha sacada,
Onde tento me livrar do lixo do dia
E ver se consigo umas duas ou três horas de sono ininterrupto,
O cheiro de mausoléus demolidos,
De trocas de pele que deixei pelo caminho,
Da exumação de lembranças
Para as quais
Há muito não acendo velas
Nem deposito vaso de crisântemos roxos.
Traz o odor de carne queimada,
De churrasco
- provavelmente do bar algumas quadras abaixo
que serve espetinhos na calçada -
E junto
As assombrações do tempo
Em que eu também me reunia com o bando em torno da fogueira.
Dou-lhes as costas.
Jogo fora minha agenda antiga
E meu álbum de formatura.
Traz acordes de rock
(Aerosmith, acredito, sempre fui péssimo com estrangeirismos musicais)
Como que saídos de distantes confins
E a mim chegado por um buraco negro de vinil
(na verdade, vem do quarto do vizinho da casa da frente),
Enchem o ambiente 
De fumaça
De bruma
E de torpor
Das noites passadas no Paulistânia.
Dou-lhes as costas.
Tiro o Raul da vitrola
E o devolvo ao seu sarcófago
Com capa e encarte originais.
Traz as risadas dos meus passos
Pelas madrugadas,
Pelas ruas vazias,
O farfalhar das asas de Mercúrio em meus velhos tênis.
Dou-lhes as costas.
Há muito depenei as asas em meus calcanhares
E lhes fiz em macio travesseiro
Para depositar e repousar meus pés,
Suas varizes, seus calos ósseos, suas tendinites.
Traz o cheiro da caça no cio.
Dou-lhe as costas.
Não me interessam mais
As cortes,
Os rituais,
As danças de acasalamento;
Nem o próprio acasalamento.
Tranquilizem-se e descansem
Pois
Do peso de suas armas,
Do controle dos holofotes,
Da coleiras de seus cães,
Os carcereiros.
Podem ir cochilar numa cela vazia
Ou jogar baralho no pátio da prisão.
Relaxem
Pois 
De suas poses e perfilamento de guardas do Palácio de Buckingham,
Oh, grades de minha cela.
Entreguem-se ao vício do oxigênio,
Oxidem,
Enferrujem sem remorsos.
Que a prisão mais Alcatraz,
Que os grilhões mais anti-Houdini
É a falta de vontade de querer fugir,
É recusar o indulto de Natal.
Sou um assum preto que fura os próprios olhos
Pra ver se assim canto melhor.
Ou choro menos.
Em tempo : o assum preto que fura os próprios olhos é referência a  uma das mais belas e tristes músicas de nosso cancioneiro, Assum Preto, de Luiz Gonzaga, que conta da antiga, comum e cruel prática de furar os olhos do pássaro preto para ele cantar melhor. Quem não conhece, é só clicar aqui, no meu poderoso MARRETÃO.

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1 Comentários

  1. O farfalhar das asas de Mercúrio em meus velhos tênis.
    Dou-lhes as costas.
    Há muito depenei as asas em meus calcanhares
    E lhes fiz em macio travesseiro
    Para depositar e repousar meus pés,
    ISSO FICOU GENIAL! JB

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