Divertidos, Moleques e Bêbados

Ao longo desta semana, o Canal Brasil está a exibir uma programação especial com obras de Hugo Carvana, grande cineasta, malandro profissional, dos que trabalham duro.
Assisti ontem a um episódio do excelente e indispensável Sangue Latino, capitaneado pela batuta austera, silenciosa e acolhedora de Eric Nepomuceno, com Hugo Carvana.
Num dado momento, é perguntado a Carvana sobre a amizade. Ele diz que fazer amigos é criar irmãos. E que ele não precisa de muitos, uns poucos e bons lhe servem : "desde que sejam divertidos, moleques e bêbados... como eu", explica Carvana.
Pãããta que o pariu!!! É isso mesmo!!! 
É o retrato falado! É o raio-X, a tomografia! É o perfil sine qua non do amigo! Tão simples e foi preciso o Carvana para me dizer. Já falei tanto de amizade por aqui, já teorizei tanto e a receita não podia ser mais básica : divertidos, moleques e bêbados.
Se Carvana ainda fosse vivo, se eu tivesse sabido disso antes, teria mandado um currículo meu para ele. Isso, claro, se os dados em meu currículo ainda fizessem jus ao cargo. Se eu ainda fosse divertido, moleque e bêbado. Não sou mais. Meu currículo está desatualizado. Mentiroso. Em todos os sentidos.
Sim, fui divertido um dia. Ranzinza pra caralho, é bem verdade, mas espirituoso, de uma rabugice sarcástica, filha da puta, capaz de extrair gargalhadas de paladares mais exigentes e sofisticados; hoje, ficou só o amargor.
Sim, fui moleque dos bons. Tipo Saci Pererê. Sempre a atazanar e a sacanear os amigos, brincadeiras de macho, próprias da camaradagem, páginas de um livro bom; hoje, não rio e não saboto nem a mim mesmo, o adulto balança e o menino já não vem me dar a mão.
Bêbado, tornei-me tarde, não era vocação natural, mas aprendi rápido, esmerei-me na prática do ofício; hoje, é a única qualidade carvaniana que ainda exercito. E nem é bem um exercício, é mais uma fisioterapia, uma manutenção. Porre, acho que o último foi em 2005, no casamento do Margá, e foi dos homéricos. Passei mal algumas vezes depois disso, o que é muito diferente : passar mal por ter exagerado na canjebrina é uma coisa; porre é outra, diametralmente oposta.
Carvana acertara na mosca : divertidos, moleques e bêbados!
Muitas vezes nos queixamos de que vamos perdendo amigos ao longo da vida. Eu mesmo, chorão profissional, nos meus momentos de recordação solitária e etílica, muito me lamentei por isso. Nada mais equivocado, porém. Uma mentira do caralho.
Não os perdemos, os amigos. Perdemos é a competência para continuar exercendo a nobre função de amigo. Deixamos de ser divertidos, moleques e bêbados. Amigos, os legítimos, não se perdem uns dos outros. Mas podem perder a habilidade de se manterem como amigos.
Era madrugada ao término do Sangue Latino com Hugo Carvana. Madrugada é sempre boa hora para revelações, para epifanias. Quis, e já se findava o sexto latão de cerveja, dividir a descoberta, diria até a cura, com meus poucos e remanescentes amigos, uns três ou quatro.
Quis ligar para eles, desculpar-me pela negligência, por ter me tornado um relapso funcionário público da repartição da fraternidade. E também, claro, acordá-los, atrapalhar-lhes o sono : já seria o moleque voltando, seria muito divertido - bom, para mim seria.
Lembrei-me do telefone de um deles, ***-1630. Pãããta que o pariu. Não era dele, não mais, era (não sei se ainda é) o número da casa da mãe dele. Vasculhei pelo telefone de outro, veio-me : ***-2135. Mesma coisa. Recordei ainda de mais outros dois telefones, igualmente das mátrias residências. E olha que já se vão umas boas duas décadas, ou mais, que abandonamos nossos respectivos ninhos
Constatei : não sei de cor (nem tenho anotado em alguma agenda, não tenho agenda) os números de telefones atuais de nenhum de meus amigos. Na verdade, não sei-lhes nem o endereço.
Procurei racionalizar, mitigar meu remorso. A culpa não é totalmente desse meu cérebro cansado e sem tesão por novos dados, informações e armazenamentos. Explico:  antes, as linhas telefônicas eram propriedades contratuais das pessoas - minha mãe, uma de minhas tias, mantêm o mesmo número há décadas -, hoje tudo é virtual, cambiável, escamoteável, volátil feito éter.
Hoje não há tempo para nos afeiçoarmos a um número de telefone, que ele já mudou, que ele já ganhou algarismos adicionais. E é tanto número, e é tanto nove, que nem é mais número, são dígitos. Dígitos... até os números perderam sua pessoalidade. Dígitos é o caralho. Hoje em dia, quem sabe o número dos telefones dos amigos de cor?
Antes, o número de telefone do amigo era a sua identidade, o seu RG, era um código morse particular para SOS, era o bat-sinal, era uma bolsa de sangue de mesmo tipo que o nosso. Quando ligávamos para o amigo, e ele atendia, sabíamos que ele estava na casa dele, sabíamos em que cadeira ele estava sentado para conversar conosco, víamos a mesa da sala, escutávamos o barulho da TV, a movimentação da mãe pela casa, erámos capazes mesmo de adivinhar a rádio que ele estava a ouvir, ou o vinil que estava a ser acariciado pelo diamante do toca-disco, o gibizão que ele estava a ler.
Hoje ele pode estar no trânsito, no banheiro, no trabalho, na fila do banco, no motel com a amante (alguns de nós têm mais sorte que os outros), no cinema, na puta que o pariu. Ele nos atende, mas, tenho certeza, mal nos ouve
Antes, acontecia de ligarmos várias vezes para o amigo e não encontrá-lo, dependia dele estar em casa, seu local de maior probabilidade, seu orbital : era o princípio da incerteza que regia nossas ligações. Hoje, com celulares, e-mails, skypes, facebooks, cresceu a acessibilidade ao amigo. Ele sempre nos atende, está sempre acessível, mas nunca disponível.
Nunca divertido, moleque e bêbado.
Como não sei os telefones atuais deles, escrevi esse texto capenga, pois sei que, volta e meia, eles passam por aqui para dar uma lida em minhas sandices.
É madrugada, de novo. Que as mesmas inquietações que me mantêm acordado a uma hora dessa, que fazem com que eu insista em escrever e escrever e escrever, não os aflijam. Bom sono, meus amigos. Aproveitem-no bem, enquanto podem. Enquanto eu não descubro os seus telefones atuais.
"Fazer amigos é criar irmãos. Divertidos, moleques e bêbados... como eu."

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4 Comentários

  1. Gostei muito, muito mesmo do seu texto. Achei nostálgico e comovente (mas deixo claro que sou heterossexual). Eu confesso minha incapacidade para ter amigos, tais como os que definiu. Minhas melhores "amizades" duraram o tempo em que tivemos contato frequente ou diário (colegas de escola, de profissão, vizinhos, etc.). Depois, se por esse ou aquele motivo, nos afastávamos, já era. Podia encontrar na rua e até parar para conversar, mas instalava-se um formalismo antes inexistente, que só me fazia ter vontade de me afastar o mais rápido possível. E sempre foi assim. Tem gente que acha que amigo é irmão, enfermeiro ou conselheiro sentimental. Para mim, amigos são só para conversar fiado e falar asneiras, para olhar a bunda das gostosas que passam, para contar piadas, só isso. Mas eu devo estar errado, claro.

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    1. Mas amigo é para isso mesmo : conversar fiado, falar asneiras, olhar a bunda das gostosas, contar piadas. E quer maior irmão, enfermeiro ou conselheiro sentimental que isso? Quer melhor tratamento, terapia?
      Eu, assim como você, também sempre fui péssimo em fazer amigos, mais ainda em mantê-los, mas três me sobraram, dos bons, desses que, por mais tempo que fiquemos sem nos ver, o formalismo de que você falou não se instala em nossos reencontros. É sempre como se tivéssemos nos visto ontem.
      Deixo claro que também sou heterossexual.

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  2. Mestre Azarão. perfeito.
    Quase ouço minha mãe, a famosa dona Malú, esbanjando simpatia e gritando para quem quiser ouvir: "Marcello, vai ficar até que horas pindurado nesse telefone ?
    Parecem dois retardados falando de revistinha" e por aí vai.lembrando que minha mãe era o Coringa, das mães de amigos. Quando eu chamava alguém para ir em casa a primeira coisa que me perguntavam era se minha mãe estava em casa.
    Sem conter o faro de perdigueiro para descobrir quando eu levava mulher em casa.
    "você não transou com nenhuma vagabunda na minha cama não é Marcello?
    Se eu pegar alguma doença eu te mato".

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    1. Grande Dona Malu...
      Realmente ela era nosso Coringa. E se mesmo esbanjando "simpatia", a gente aprontava o que aprontava, imagina, então, se ela nos tratasse bem e cheia de sorrisos? Tava certa, a Dona Malu.

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