Ligeira Crônica Solar (2)

Ele, em ida ao trabalho, a via quase todos os dias : camiseta sem mangas, bermuda de lycra ou qualquer outro tecido aderente, tênis para corrida, como quem poderia estar de volta ou a caminho de uma academia de ginástica; porém, era a passear com seus dois cachorros que sempre estava, atividade que lhe conferia igual ganho em saúde e muito maior dignidade.
Via-a sob a quase-luz da manhã ainda conservada em madrugada pelo horário de verão. Olhava-a sempre da calçada oposta à dela, sempre uns tantos passos atrás. Nunca teve intenção de se aproximar, muito menos de encetar conversa ou abordagem, ela era uma imagem animada que lhe agradava, e só. Não era especialmente bonita, era especialmente singular, quase que literalmente única àquela hora da manhã.
Um dia, ela estacou o passo e fez estacar os dos seus cachorros, segurando-os pelas coleiras. Levou a mão àlgum bolso insuspeitado da bermuda e sacou um telefone celular, um hediondo de um celular. Assim que o aparelho foi acoplado ao ouvido, uma luz azulada iluminou a face dela, luz de necrotério.
Então, ela respondeu ao seu interlocutor com voz horrivelmente alta. E riu desbragadamente. Histericamente, como são as risadas forçadas que as pessoas dirigem às máquinas, às outras pessoas por detrás de outras máquinas, risadas que são mais tiques nervosos do que a mansa manifestação do reconhecimento de um fato engraçado, risada saída de um sintetizador de som, risada que a máquina daria se lhe fossem dadas cordas vocais.
Acabou-se a singularidade. Ela se tornou apenas em alguém levando os cachorros para cagar. Acabou-se a dolce luce. Desgraçadamente, raiou a realidade.

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