Que Fossa, Hein, Meu Chapa, Que Fossa...(14)

Esta canção, Depois, gravada por Marisa Monte em seu mais recente CD, engana à primeira vista, ou, no caso, à primeira audição, e mesmo em distraídas e descuidadas audições posteriores. Nem parece música de fossa, de dor de cotovelo, e se sim, aparenta uma fossa mais leve, uma dor de amor mais comportada, menos profunda, quase que simplesmente um relato musicado de um rompimento em comum acordo, um fim de caso consensual, mais à guisa de um registro que de um lamento, aquela dor civilizada e racional dos que, desgraçadamente, nunca enlouquecem. Aparentemente.
Aparentemente porque : primeiro, não existe rompimento amoroso de comum acordo, no famoso pé-na-bunda, sempre existe um pé e uma bunda; segundo, em toda canção de fim de caso - em toda boa canção de fim de caso -, independente de qualquer aceitação racional ou conformidade aparente, há um punhal escondido, encravado no peito, no peito resignado ou não.
Exemplifico com o que conheço de melhor : Trocando em Miúdos, do velho e inigualável Chico Buarque.
O cara vai se despedindo à medida do bom fim, fazendo a divisão pacífica dos espólios do casal (o disco do Pixinguinha é meu), garante à ex que não cobrará pelo peito dilacerado, e até rima uma ajuda do futuro amor no aluguel com o Neruda que ela lhe tomou e nunca leu, façanha que só pode ser do Chico. Mas aí, quando menos se espera, vem o punhal de amor ferido : eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade, e a leve impressão de que já vou tarde.
Puta que o pariu!!! É "a leve impressão de que já vou tarde" que põe a casa abaixo, que arrebenta com a máscara civilizada do autocontrole, que arrepia até os pelos do cu. É a raiva/vergonha/constatação da inutilidade/da perda de tempo/identidade do sujeito, que ainda muito queria, mas que, há tempos, não era mais querido. Nem é um punhal, é uma cimitarra a trespassar o pobre e proletário miocárdio.
No caso de Depois, composição da própria Marisa mais Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes, o punhal sorrateiro já se anuncia no título da canção. Ela vai cantando como o fim será bom pros dois, de como voltarão a ser livres etc, e encerra com o punhal : Quero que você seja feliz, Hei de ser feliz também, Depois.
De novo o punhal na forma de um advérbio, depois. Depois quando, porra? Qual o prazo previsto para um depois? Por quanto tempo se aguenta esperar por um depois? Por quantos canalhas a pessoa passará na ânsia de ultrapassar a barreira desse depois, ou quantas vezes agirá, ela própria, com o mesmo intuito, também como um canalha?
O depois - vago, indefinido e, sobretudo, incerto - é o que mata, o que perfura, rasga e eviscera. Ainda mais se o (a) ex já se encontrar feliz em outro advérbio, no agora. Aí é que fodeu. Aí é que a fossa nada tem leve ou rasa, tem é de abissal, e nos imprime todo o peso do mundo.

Depois
(Marisa Monte/Carlinhos Brown/Arnaldo Antunes)
Depois de sonhar tantos anos,
De fazer tantos planos
De um futuro pra nós
Depois de tantos desenganos,
Nós nos abandonamos como tantos casais
Quero que você seja feliz
Hei de ser feliz também


Depois de varar madrugada
Esperando por nada
De arrastar-me no chão
Em vão
Tu viraste-me as costas
Não me deu as respostas
Que eu preciso escutar
Quero que você seja melhor
Hei de ser melhor também


Nós dois
Já tivemos momentos
Mas passou nosso tempo
Não podemos negar
Foi bom
Nós fizemos histórias
Pra ficar na memória
E nos acompanhar
Quero que você viva sem mim
Eu vou conseguir também


Depois de aceitarmos os fatos
Vou trocar seus retratos pelos de um outro alguém
Meu bem
Vamos ter liberdade
Para amar à vontade
Sem trair mais ninguém
Quero que você seja feliz
Hei de ser feliz também
Depois

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