Pequeno Conto Noturno (32)

A Rubens, o paladar e o cheiro lhe remetem à infância, ao gosto e ao odor da terra que invadia abruptamente seus sentidos, quando do sopetão de seus tombos, inepto que sempre fora para os folguedos infantis - andar de bicicleta, carrinho de rolemã, futebol -, ao sabor ferruginoso da água dos bebedouros corroídos das escolas primárias, das enxurradas barrentas que lhe tomavam em pilhagem a boca, as narinas, os olhos e os ouvidos.
Valentina, pela primeira vez exposta em seus dias impróprios, sente como se um parasita estivesse com a boca entre suas pernas, uma boca cheia de tentáculos, ganchos e ventosas. Parece-lhe exagerada submissão prestar-se dessa forma, assim de antepasto, uma violação de seus ideais feministas, sente grande vergonha e um denso esmagamento; porém, ao mesmo tempo e até com maior intensidade, experimenta um regozijo inédito, um poder arrebatador em se saber um manancial restaurativo, um êxtase insuspeitado de se descobrir cornucópia, de mãe que aleita a cria.
Valentina manda seu feminismo à merda, um corisco eletrifica sua medula espinal e uma secreção de outra natureza se junta ao seu sangue, fazendo transbordar a boca de Rubens.
Carrapato saciado, Rubens enche a boca do precioso maná e se desacopla dos baixos lábios de Valentina, sobe pelo corpo dela, arrasta-se, rasteja : virilha, umbigo, baixo ventre, costelas, entrepeitos, peitos, pescoço, embaixo do queixo, orelhas. Em cada milímetro percorrido, Rubens regurgita frações do sangue armazenado em sua boca, marca sua passagem, deixa um rastro ferroluminescente.
E sem aviso, mesmo porque era o esperado, o ansiosamente aguardado por ambos, Rubens entra em Valentina, duramente, que arfa, joga a cabeça para trás, abre a boca, como que à procura de mais ar, mas o que encontra é a boca de Rubens, que lhe impõe o último trago de sangue guardado, espalha-o com sua língua pelos lábios, dentes e céu da boca de Valentina, obriga que ela engula.
Muito mais que um novo corisco, muito mais que uma nova fagulha, agora é um arco voltaico que faz sacudir a medula de Valentina, e também a de Rubens. Os dois se fundem, evaporam, volatilizam, mesclam-se numa névoa carmim, numa rubra neblina que umidifica e satura todo o quarto : uma aurora boreal infravermelha.
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Rubens contempla Valentina, vermelha, a dormir, letárgica, coagulada. Sabe que ela ficará por mais tempo que as outras, que a maioria delas. Sente vontade, ganas, até, de lhe pedir que fique; sorvendo uma derradeira gota de sangue que se mistura à baba do sono e escorre do canto da boca de Valentina, Rubens seria capaz de pedi-la em casamento.
Mas se contém. Tudo passa, tudo se exaure e se esgota, sabe Rubens. Mesmo a vitalidade do sangue.

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