Pequeno Conto Noturno (24)

- Me esqueceu? - estranha Margô, que viera toda animada à casa de Rubens, ele em retorno de viagem.
- Sim.
- Me esqueceu ?!?!
- Minha memória, não; minha vontade, sim - tergiversa Rubens.
- Como? Você nem ficou fora tanto assim.
- O desejo é algo estranho e esquivo, Neil Gaiman o retrata como um andrógino de pele pergaminácea e olhos dourados.
- Neil Gaiman, quem é esse viado?
- Nada mais, nada menos, que o criador da mais bela das mitologias modernas, mas não estou com ânimo pra explicar.
- Acho que nem eu pra ouvir - rebate Margô -, eu até trouxe um whisky... foi como começamos... - tenta ela protelar.
- Então, ele será um adequado e irônico ponto final.
- Ponto final... às vezes esqueço de como você é de extremos, de tudo ou nunca mais, e de como transita rapidamente entre eles, até parece bipolar.
- Bipolar é redundância - Rubens, evasivo.
- Não gosto de pontos finais - segue Margô -, prefiro as reticências...
- Eu sei. Tomemos, pois, uma dose - sugere Rubens.
- Pra quê? Não me deseja mais...
- Mas sim ao whisky, que é bebida à parte dos ódios e afeições humanas.
Rubens vai à cozinha e volta com dois copos recém-enxaguados. Margô abre a garrafa, rótulo preto, coisa fina, e serve uma comedida dose para cada um.
- Brindemos e emborquemos - ordena Rubens.
Há um retinir de copos e uma enxurrada de lava a descer pelas gargantas.
- Sirva mais uma - pede Rubens -, que a primeira é sempre do diabo.
- Quer dizer, então, que aquela história toda de você passar um tempo em sua cidadezinha natal, reencontrar suas origens, era tudo desculpa? Tudo pretexto pra me esquecer? - e Margô serve doses triplas para cada copo, ganhar tempo, talvez.
- Não - diz Rubens em meio a uma bebericada -, eu não preciso de subterfúgios para esquecer ninguém. Vez em quando, preciso morrer, me enterrar fundo. E que melhor maneira de morrer que voltar às origens? No processo, meu desejo lhe olvidou.
- Um efeito colateral imprevisto? - tenta ainda entender Margô.
- Digamos que sim. As relações humanas não vêm acompanhadas de bulas.
- Simples assim?
- Não sei se simples, mas assim.
Margô vira o resto do whisky, uma entornada de fazer páreo a Clint Eastwood, e guarda a garrafa na bolsa.
- Rubens, apesar de não ter mais desejo, tem ainda algum apreço por mim?
- Claro.
- Me atende a um último pedido?
- Diz.
- Vai tomar no meio do seu cu ! - e Margô sai em direção à porta.
- Margô - chama Rubens -, e você, tem ainda algum apreço por mim?
- Só até atravessar essa porta.
- Me atende a um último pedido?
- Diz.
- Deixa a garrafa comigo?

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