Cinco horas e dezoito minutos, é o que mostra o relógio da loja de conveniência em que Rubens entrou depois de andar por quase três horas pelas ruas quase vazias e quase escuras da cidade. Em sendo horário de verão, e a bem da verdade, são, portanto, quatro horas e dezoito da manhã.
O relógio mente sem se dar conta de. As máquinas terminam por assumir os mesmos comportamentos de quem as manipulam, feito aqueles cachorros poodles idiotas que assimilam os QIs do donos, e mais idiotas se tornam, pensa Rubens.
Rubens nunca alterou seu relógio (quando ele ainda possuia um) desde que começou essa palhaçada de horário de verão, mentalmente ele alterava a hora de seus compromissos (quando os tinha), ele passava a entrar no trabalho às seis horas, almoçar às onze horas e assim por diante.
Não mexer em coisas que não se entende sempre foi uma das diretrizes da vida de Rubens; o tempo é uma delas. À sua própria regra, direito lhe seja dado, faz única exceção : as mulheres. Igualmente ao tempo, não as entende; diferente dele, têm peitos e bucetinhas. Então ele se arrisca.
- Rubens? - uma voz às suas costas.
- Ainda.
- Quanto? Uns quatro anos? - segue Dalila, a dona da voz.
Pessoas há muito tempo sem se verem não se acolhem logo de cara com um abraço, faz-se necessário perguntar, antes de tudo, "há quanto tempo?". Talvez como forma de fugir à justificativa pela ausência de um na vida do outro, ainda mais se ficou a cargo de um retomar o contato e ele procrastinou. Estabelecer o tempo perdido é matá-lo, fixá-lo em formol, fundar um novo marco zero.
- Acho que um pouco mais - e Rubens simula cara de quem faz cálculos mentais desse tempo -, cinco, talvez quase seis anos.
- Esse é o seu café da manhã? - E Dalila aponta com os olhos para a lata de cerveja na mão de Rubens.
- Digamos que seja meu chazinho da noite, para ir dormir.
Ela sorri. Ele se aproxima, tira a boina da cabeça dela com as duas mãos, ajeita a franja amassada.
- Você é linda.
- Sempre me achou linda?
- Não.
-Você não muda - e sorri de novo -, sempre péssimo em fazer elogios, e quando os faz, não consegue sustentá-los por muito tempo.
- A culpa é sua, das pessoas - Rubens acaba com a lata, pega outra no freezer, vai ao balcão, paga e volta com um café para Dalila.
- Por quê? Eu e as pessoas não somos suficientemente elogiáveis?
- Você é.
- Então...
- É que vocês ficam questionando os elogios como forma de obterem reforços a ele, "você acha mesmo?", "não está dizendo só pra me agradar?", ficam querendo a confirmação do elogio. A gente salpica um pouco de confete e vocês logo querem um baile de serpentinas.
Ela ri mais uma vez, com mais gosto e liberdade.
- Te odiei quando sumiu, mas agora vou lembrando do porquê, estranhamente, gostei tanto de você.
- Isso é um elogio? - pergunta Rubens.
- Para você, sim; para mim, não.
- Não achei você bonita de começo, e nem durante algum tempo. Mas depois que passei a achar, não deixei de. Acontece muito das pessoas que achamos bonitas irem enfeando, você permanece.
- Humm.. isso já é um elogio mais decente.
- Claro que pode ter relação com o fato de eu nunca ter te comido.
- Lá vem... não podia ter parado, né?
- Não comi, não senti seus odores, seus suores, suas asperezas, seus rostos matutinos, suas viscosidades, seus atoleiros, seus humores e mal-humores. A imagem que tenho de você é a que pintei no momento em que lhe descobri bonita, não houve desgaste nem corrosão.
- E só por isso continuo linda?
- Talvez.
- Continuo bonita numa espécie de Retrato de Dorian Gray que pintou de mim.
- Exato. E ele continua aqui, nos meus porões, intacto e viçoso. Não termos trepado evitou o ressecamento da tinta, impediu seu desbotar e amarelamento.
- Não sei se gosto disso. Parece meio mórbido, parece coisa de quem faz aqueles quadros de borboletas espetadas com alfinetes. Pega mais um café pra mim?
Rubens vai e volta.
- Por que não sabe se gosta? Você não adquiriu uma ruga sequer, as maçãs do rosto não arrefeceram, não há culotes, estrias ou celulite. Quer maior elogio do que ser mantida sempre bonita, intocada pelo tempo?
- Os museus de cera fazem isso, e os embalsamadores. É doente. Não gostei do rumo que a conversa tomou. Foi a melhor desculpa que já ouvi de alguém que não tenha querido me comer, mas não gostei - Dalila baixa os olhos para a xícara de café e cala.
Rubens levanta, pega outra lata, volta e espera que o silêncio seja rompido por ela, tempo suficiente para ele acabar a terceira e começar a quarta lata de cerveja.
- Quatro latas? - retorna Dalila
- Não bebo desde as duas da manhã.
Outro silêncio. Brevíssimo.
- Rubens...
- Diz.
- Isso do meu Retrato de Dorian Gray...
- Sei.
- Eu já tenho uma certa idade...
- Todos temos.
- Se você me convidar agora para irmos à sua casa, ao seu quarto, garanto que não vou me importar de ganhar umas ruguinhas em torno dos olhos, uns pezinhos de galinha...
- É?
- É.
- Se você topar também umas boas olheiras arroxeadas, eu convido.
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