Cenas de Cinema

Quando a vi, logo ali tão perto, a 20 ou 30 passos meus, ela havia sido abandonada, largada à calçada, à sarjeta, deixada às intempéries do tempo e do esquecimento. Ela estava curvada, dobrada sobre si mesma, sob a marquise de um prédio e a goteira de um aparelho de ar-condicionado.
Mesmo àquela distância, reconheci nela o seu passado digno e glorioso. A tipografia clássica. O castiço português, do tempo do império dos acentos circunflexos.
Cheguei-me a ela cuidadoso, abaixei-me, tomei-a pelas mãos, levantei-a com extremo zelo para que não se rasgasse ou se desfizesse, desdobrei-a, deixei o excesso de água escorrer e pingar na calçada, abri minha bolsa de lona cáqui, abri meu caderno e a deitei esticada entre suas páginas, para melhor recompor-se e secar.
Uma folha de um antigo, e já extinto na forma impressa, jornal da cidade. Menos que uma folha até, apenas metade dela. Jornal O Diário, de uma quinta-feira, 2 de dezembro de 1971. 6.194º edição. Eu contava com apenas quatro anos e pouco de idade, então.


Bem a página "cultural" do dia. Com a programação do canal de TV (acho que assim mesmo, no singular) e dos principais cinemas da então pequena e pacata Ribeirão Preto.


Das atrações da telinha - notem que a TV só ia ao ar a partir do meio-dia -, lembro-me da Noviça Voadora, do Anjo do Espaço, de I Love Lucy (eu "hated") e da Pantera Cor-de-Rosa. Da telona, cheguei a conhecer os dois cinemas, o Bristol, onde assisti ao primeiro Superman, com Christopher Reeve, e o Pedro II, em cujas cadeiras muito gargalhei com o primeiro filme dos Trapalhões, Robin Hood, o Trapalhão da Floresta.
Achar a folha do jornal foi como tropeçar no passado, cair no Túnel do Tempo, virar figurante de um episódio de Além da Imaginação (o original, não o remake de merda que Spielberg fez depois). Foi como dar com uma foto esquecida de um velho amor no fundo de uma gaveta.
Eram tempos mais satisfatórios? Provavelmente, sim; provavelmente, não. Mas éramos crianças : o melhor dos tempos.
Lembrei-me do carpete vermelho e felpudo, do grande candelabro, do balcão que vendia Mentex, dos azulejos azuis e roxos dos banheiros do Bristol, de seus quase 700 lugares. Lembrei-me do teto abobadado, das cornijas e dos camarotes no andar superior do Pedro II, Cine e Teatro oriundo dos tempos auriverdes do Ciclo do Café..
Que esse é o gozo dos velhos. Lembrar. Mil vezes a impotência, o Alzheimer da massa fálica que o da massa encefálica. Eram tempos mais simples, na certa. Menos frenéticos e esquizofrênicos. Repararam nos telefones dos cinemas? Apenas quatro dígitos. Nem parece telefone. Parece endereço, número de casa.
Na ocasião da edição do jornal, o Pedro II estava com dois clássicos em cartaz. 
Tora, Tora, Tora, o longa-metragem nipoamericano sobre o ataque a Pearl Harbor. Teve a parte japonesa dirigida por ninguém mais ninguém menos que Akira Kurosawa. Devo tê-lo assistido não no cinema - eu tinha apenas 3 anos quando de seu lançamento, em 1970 -, mas várias vezes no Primeira Exibição e no Corujão, já na Rede Globo. Tora, Tora, Tora significa Tigre, Tigre, Tigre e era o código usado pelo comando japonês para ordenar um ataque de seus kamikazes. E tinha que ser Tigre, mesmo. Porque tora de japonês não mete medo em ninguém.
Moscow contra 007, ainda com Sean Connery, no qual o agente de sua majestade com licença para matar recebe a difícil missão de ajudar uma agente soviética dissidente gostosa pra caralho a fugir de seu país e recuperar uma leitora de códigos na embaixada russa. O que Bond não sabia era que a missão fora tramada pela organização Spectre, no intuito de atrai-lo a uma arapuca. Bond frustra os planos da Spectre e, claro, passa a vara na agente russa.
Se o primeiro filme - Tora, Tora, Tora - fosse reexibido ou refilmado hoje em dia, iria bombar, viralizar; equivocadamente, mas iria. As salas iriam lotar de maconheiros. Tora, tora, cadê a tora?, perguntariam os bichos grilos.
Pãããããããta que o pariu!!!!!

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6 Comentários

  1. Rapaz, essas publicações antigas são um grande barato (nem precisam da tora). São mesmo um ingresso para um tunel do tempo. Infelizmente não temos como guardar tudo nem sabemos avaliar o que realmente vale a pena. Minha mãe guardava estampas de atrizes famosas das décadas de 30, 40, 50, sei lá, que vinham com sabonetes. Cansei de apreciar a beleza de algumas, realmente lindas. Outra coisa que ela guardava eram exemplares muito antigos da revista Cruseiro. Sabe Deus onde isso foi parar. No lixo, provavelmente. Guarde o seu "Diário", não jogue fora, pois é um fragmento do retrato da época m que foi publicado.

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    1. Vai ficar guardado, sim. Tenho uma meia dúzia da revista reader's digest e gosto muito de ver as propagandas da época.

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    2. Você tocou no "nervo"! Um dos irmãos da minha mãe comprava Seleções desde 1942 ou 43. Creio que os últimos números eram de 1950 e poucos. Quando ele foi para Uberaba para fazer faculdade (o único irmão da minha mãe com curso superior) deixou um baú com dezenas da revista. No começo eu só recortava desenhos de aviões, tanques, canhões (revistas da época da Segunda Guerra). Depois, já maiorzinho, comecei a ler TUDO, na esperança de encontrar algum artigo que me ensinasse a beijar (eu sempre fui meio retardado). Pode acreditar, eu só não li as páginas "Enriqueça seu vocabulário", assinadas pelo Aurélio. A curiosidade é que no início as revistas eram encadernadas como os cadernos de escola. Só tempos depois é passaram a ter lombada reta, como os livros. Depois de me casar deixei a aquela tralha para trás (assim como ele também tinha deixado). Um dia meu irmão ou meu pai perguntou se eu queria ficar com o "tesouro". A resposta foi similar a "nem fodendo!", mas peguei dois exemplares da época da guerra, pois as propagandas tinham desenhos incríveis de navios, aviões militares, soldados em combate ou coisas do gênero. Deve ter sido aí que me tornei americanófilo, o que sou até hoje (por isso, não adianta ninguém me chamar de "comuna", pois a resposta mental será "comuna é seu cu!"). Para finalizar, não faço a menor ideia onde foram parar as revistas que peguei.

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    3. Eu também, ao longo da vida, mudei-me algumas vezes. De Ribeirão para Porto Velho (de 1980 a 1982), depois para São José dos Campos (de 1983 à metade de 1985), para Ribeirão Preto de novo, de Ribeirão para Mococa (2000 a 2002), para um apartamento de volta a Ribeirão (2003 a 2006), para outro apartamento em Ribeirão (de 2006 a 2020) e, finalmente e espero que o último antes da morada derradeira, para o apartamento em que estamos agora, desde maio de 2020. Nessas andanças e mudanças muita coisa também foi perdida, ou teve de ser descartada, ou por questão de espaço ou por ser resultado de puro acumulacionismo.

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  2. "Porque tora de japonês não mete medo em ninguém"
    Reflexão profunda ou "pouco profunda"? kkkk
    Quando guri, eu costumava consultar os jornais para acompanhar a programação da TV aberta, saber quais filmes passariam etc., bem como os horários.
    Abraços!

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