Ao Mestre Valfrides, Com Carinho

Desde que me entendo por gente alfabetizada, sou fiel devoto da palavra escrita. Se uma imagem vale por mil delas, foda-se a imagem. Desde que fui muito bem alfabetizado pela clássica, tradicional e eficientíssima (e por isso mesmo execrada pela peidagogia "moderna") cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima, sempre morri de amores pela palavra escrita. Paixão, haja vista como escrevo, não correspondida, é claro.
Quereria ser como o Chico, o Buarque, o cara de quem as palavras gostam, até as palavras se rendem aos encantos e ao olhos ardósia de Chico.
Sempre li. Muito. Inicialmente, muito gibi. Da Disney e da Turma da Mônica. Uma tia, irmã mais nova de meu pai, comprava-os aos montes, lia-os e repassava-os para os sobrinhos. Depois, com cerca de 12, 13 anos, passei para os quadrinhos de heróis. A dizer, de novo, da relação da imagem com a palavra escrita, sempre preferi o gibi que, a exemplos, um desenho animado do Mickey e do Pateta, uma animação ou mesmo um filme de heróis. Até hoje, prefiro.
Livros, também, li bastante. Com nove ou dez anos, lera já toda a coleção infantil do Monteiro Lobato. Quase toda a coleção Vagalume da época : O Escaravelho do Diabo, A Ilha do Tesouro, O Menino de Asas, O Caso da Borboleta Atíria, entre outros. Coleção Francisco Marins, Nas Terras do Rei Café, O Coleira-Preta. A excelente coleção Para Gostar de Ler, coletâneas de crônicas, selecionadas para o ensino fundamental, de autores como Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector etc.


Contudo, foi apenas entre os anos de 1983 e 1984 que migrei da literatura infantil para a dita literatura "séria"; eu contava, então, com 16 para 17 anos de idade.
Ingresso conduzido e regido pela batuta de um dos melhores professores que tive na vida, dos melhores professores que alguém poderia ter, o mestre Valfrides, de quem tive a honra e o privilégio de ser aluno nos meus segundo e terceiro anos do Colegial, no Colégio Objetivo, de São José dos Campos. Mestre Valfrides residia em São Paulo, capital, mas viajava por várias unidades do Objetivo em outras cidades.
Figura das mais peculiares, o mestre Valfrides. Educadíssimo. Pessoa das mais finas com que convivi. Modos de fidalgo, o mestre Valfrides. Chamava-nos de senhores, falava sempre baixo, vocabulário impecável, de gestos contidos - ainda que, às vezes, teatrais -, falava sempre com as mãos postas junto ao peito ou com os braços esticados junto ao corpo. Tão sério - sem ser ranzinza - que acabava por ser engraçado. Um tímido dos mais prolixos. Sempre iniciava a aula em tom de revisão e recordação da aula anterior : "- na quarta-feira próxima passada, falamos sobre...".
Tínhamos aula dupla com ele sempre às quartas. Cem minutos que eu não via passar, pareciam cinco minutos. Aula Juscelino Kubitscheck, a do mestre Valfrides, cem minutos em cinco.
Com mestre Valfrides, aprendi que a literatura séria não é, necessariamente, chata. Aprendi que o Romantismo pode não ser apenas meloso e piegas, um mar de rosas no qual se banham os amantes; pelo contrário, surpreendeu-me e fascinou-me saber que ele poderia também ser lúgubre, tétrico, até. Deleitou-me, os "causos" da Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, contado-nos por mestre Valfrides. Se aquilo era Romantismo, eu sempre fora, sem saber, um romântico incurável.
O gosto pela poesia, até então inexistente, foi-me despertado, igualmente, em suas aulas, quando nos declamou Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, de alcunha o Poeta da Putrefação, o soneto que termina assim : "se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!"
Pãããããta que o pariu!!! Se escarrar na boca que te beija e apedrejar a mão vil que te afaga era poesia, descobri, com os pelos do braço arrepiados, que eu gostava de poesia, então. Depois vieram Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Álvaro de Campos e que tais.


Não sei se mestre Valfrides leciona até hoje, ou se aposentou-se, ou mesmo se ainda vivo. Supondo que ele estivesse na casa dos 30 e poucos anos quando foi meu mestre, atualmente, estaria na casa dos 70 e tantos, e com mais de 40 anos de profissão. Busquei por ele na internet e só o que encontrei foi um vídeo postado por uma aluna em junho de 2013, do qual tirei a foto que encerra essa postagem.
Em tempos de total desrespeito para com o verdadeiro professor, gostaria de reencontrar o mestre Valfrides, que, claro, nem faria ideia de quem eu fosse. Eu me apresentaria a ele, diria quando e onde tivera o prazer de compartilhar o seu conhecimento e paixão pela literatura, expressaria minha sincera e eterna gratidão pelo mundo cujas portas ele me abriu, o chamaria para uma cerveja, para uma noite na taverna e, depois de uns três ou quatro copos, minha timidez anestesiada, eu lhe diria : - quer ver o que eu sei fazer, mestre? E lhe declamaria Versos Íntimos.
Obrigado, mestre, obrigado.

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6 Comentários

  1. Boa! Não sei se existe um brasileiro sequer na faixa dos quase 50 que não tenha sido alfabetizado pela grande cartilha Caminho Suave. Um clássico da literatura, eu diria.

    Nesse país de merda em que vivemos, sem menosprezar as demais ciências, diria que um cidadão mediano deve possuir conhecimentos consistentes em pelo menos duas áreas: matemática e português. Devo meu "sucesso" a elas.

    Pena que não consegui converter tudo em cifras da forma desejada, mas de qualquer forma tenho orgulho de ter sido educado dessa forma e ter investido meu tempo na leitura da Coleção Vagalume e HQs nos anos 80 e 90.

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    1. Sim, a matemática e o português são a base para qualquer outra ciência que faça jus ao nome.
      Também tenho muito orgulho de ter sido educado com disciplina, firmeza, cobrança, pressão e nenhuma condescendência.

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  2. Belíssimo e comovente texto. Eu me vi retratado em muitas partes do texto, mas no meu caso o buraco é mais embaixo, pois quem leu alguns livros da Coleção Vagalume foram meus filhos! E fui alfabetizado em 1958 pela cartilha "O Livro de Lili" (mas já sabia ler). Quanto ao professor de português a quem mais admirei e de quem mais me lembro eu o conheci e fui seu aluno já em 1969, fazendo cursinho pré-vestibular (sou muito velho!). O cara era genial. E para acabar: eu fiz o primeiro vestibular unificado da UFMG, com oito provas, uma por dia. A matéria onde mais pontuei foi Português, seguida por Matemática. Faltando duas provas para o final do vestibular eu já estava aprovado. Bons tempos! Mas não soube aproveitar isso na faculdade.

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    1. Quando você fala de não aproveitar direito a faculdade, também lembro um pouco de mim. Entrei na Química -USP em 1986, passei em 1º lugar no vestibular, mas depois despiroquei, não consegui me dedicar ao curso. Há o atenuante do curso ser período integral e eu ter que trabalhar paralelamente, à noite ou aos fins de semana, mas hoje vejo que o que me faltou foi mesmo maturidade; então, migrei do curso de química para o de Biologia, nas Faculdades Barão de Mauá, onde eu trabalhava à noite, o meu chefe me trocou de período e eu cursei biologia, aí já mais velho e tudo correu nos conformes.
      Você, ao menos, chegou a se formar na UFMG, conseguiu concluir o curso.

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  3. Minha mãe ainda tem guardada a Caminho Suave usada por mim e minha irmã nos 1970. Sobretudo os livros de Marcos Rey são gostosos de ler até hoje e Spharion de Lúcia Machado de Almeida é a ficção científica brazuca mais legal que já li.
    Francisco Marins é meu autor favorito da época de menino (também gosto muito das obras adultas ligadas ao ciclo do café) e cheguei a conhecê-lo em 1985. Meu trabalho de conclusão de curso foi sobre parte da obra de Marins e publicado em revista científica, uma verdadeira paixão junto com as ilustrações do Oswaldo Storni. Abraços!

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    1. Cara, que legal você ter conhecido o Marins! Ainda tenho aqui em casa os dois livros dele que citei na postagem.
      Spharion não cheguei a ler. Compensa baixar um pdf pra dar uma olhada?
      Abraço.

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