Dia Mundial do Canhoto

Os canhotos, sim, são uma minoria de fato. Somos apenas cerca de 10% da população - e a tendência é que esse valor diminua, pois somos mais inteligentes, o que nos leva a procriar menos e, assim, o gene vai se tornando menos frequente. Só perdemos para os ateus, que compões algo em torno de 2,4% da população planetária. Isso, é claro, os ateus verdadeiros, convictos, de nascença, não devendo ser confundidos com os que se declaram "não religiosos". Que é o sujeito que até gostaria de ser ateu, mas tem medo de que Deus castigue, é o indeciso, o "tucano", aquele que nem caga nem sai de trás do altar. Eu, que sou canhoto e ateu, então, pertenço à menor subminoria do mundo, faço parte de um contigente que não ultrapassa 0,24% da população global. Se bem que acredito que esse valor possa ser um pouco maior, posto que mais inteligentes que a média, o porcentual de canhotos que não crê em Deus é provavelmente maior do que na população em geral.
O preconceito e a perseguição aos canhotos vêm de longe. É secular. Mais ainda : milenar. Data da Idade Média, os mil anos durante os quais as bênçãos da Igreja Católica recaíram sobre a humanidade. Homens e mulheres canhotos eram acusados de ter parte com o Diabo e viravam churrasquinho nas fogueiras santas - canhotos foram incinerados muito antes dos judeus pelo nazismo. O próprio Demônio era dito canhoto pela igreja. Muitas representações artísticas da época retratavam o Capiroto sempre a empunhar o tridente com a mão esquerda. O preconceito contra nós canhotos é, inclusive, etimológico. Nem mesmo o idioma latim, a nossa língua-mãe, se esforça muito para livrar a nossa cara; antes pelo contrário. Nossa denominação deriva de sinister, que além de se referir ao lado esquerdo, pode também denotar obscuro, ameaçador, ominoso e agourento..
De lá para cá, é bem verdade, a situação deu uma aliviada para o nosso lado, ao menos não vamos mais para a fogueira, mas ainda assim sofremos cotidianos preconceito e discriminação. Uma discriminação das mais veladas e sutis, daquelas que só se percebe nos pequenos detalhes, porém, contínua feito a tortura chinesa do pingo d'água na testa. Uma discriminação que se faz sem remissões e nas pequenas coisas aparentemente sem importância, que não se manifesta em grandes atos de violência, mas através de pequenas alfinetadas, de quase que imperceptíveis picuinhas e hostilidades que não chegam a causar desconforto, constrangimento ou humilhação grandes o suficiente para que os canhotos se organizem em ONGs ou em movimentos sociais - não que eu saiba, pelo menos. A não ser o Ned Flanders, de Os Simpons, proprietário da Leftortum, uma loja especializada em produtos para canhotos.
Avançando um pouco no tempo em relação à Idade Média, mas também nem tanto assim, chegamos a 1974, o ano em que comecei a trilhar o Caminho Suave das letras. As professoras dos meus 1º e 2º anos de grupo escolar me "forçavam" a preencher cadernos e mais cadernos de caligrafia escrevendo com a mão direita. Não proibiam que eu usasse a esquerda na maior parte do tempo, para copiar a matéria do quadro, fazer as tarefas e realizar as provas, mas queriam, literalmente, me adestrar ao uso da mão direita. Tal prática, ainda comum naqueles dias, atualmente faria arrepiar até os cabelos dos cus dos peidagogos, segundo os quais o ato de forçar o aluno a qualquer coisa que não lhe seja natural (estudar, inclusive) pode lhe causar sérios traumas e bloqueios cognitivos. O caralho!!! Eu não gostava de escrever com a mão direita, claro, mas tampouco me sentia aviltado ou violentado, nem exposto a constrangimento ou qualquer outra desculpa furada que vagabundo inventa para não estudar; todas elas, hoje em dia, "fundamentadas" e avalizadas por essa peidagogia de viés esquerdista da porra. A "tia" mandava eu escrever com a mão direita, eu escrevia e pronto. Simples e fácil assim. Sem levantes nem marchas de protesto. Sem organizar Simpósios de Peidagogia para debater o "problema".
Não só não me traumatizou como tenho certeza de que conferiu uma plasticidade muito maior ao meu cérebro, tornou-o ainda mais hábil, pois me forçou a construir certas conexões no lado esquerdo do cérebro (os movimentos do lado esquerdo do corpo são coordenados pelo lado direito do cérebro, e vice-versa) que, deixado a escrever só com a mão direita, só com o que me era "natural", eu jamais teria estabelecido. Fez com que eu adentrasse por portas do cérebro as quais, normalmente, eu jamais me aventuraria a abrir, a arrombar. Hoje, e já há muito tempo, eu não escrevo mais com a mão direita, mas os caminhos abertos a facão para que isso acontecesse no passado são usados para o fluxo de outras informações e habilidades.
Atualmente, ninguém obriga mais os canhotos a escreverem com a mão direita; aliás, hoje em dia, ninguém é mais obrigado sequer a aprender a escrever, seja com qual mão for. A peidagogia esquerdista, humanista, paulofreirista, calcada na igualdade, fraternidade e o escambau, e sobre a qual está alicerçada a permissiva LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), diz que cada apedeuta tem "o seu tempo", que ele aprenderá quando o conteúdo transmitido lhe tiver alguma significância; e vão passando, aprovando automaticamente e distribuindo diplomas e certificados de conclusão de ensino fundamental e médio para uma legião de semianalfabetos. Hoje, se o aluno simplesmente conseguir escrever, já é considerado um grande acontecimento, pode ser até com o pé, pode ser até o famoso "Ó" com o cu.
Apesar dos pesares, o preconceito e a perseguição aos canhotos segue firme. O bullying perpetrado pelo latim se propagou para uma de suas mais diletas filhas, a Língua Portuguesa, na qual deixamos de ser funestos seres da sombras para nos tornarmos em ineptos desajeitados. O léxico diz que o destro, além de ser quem usa preferencialmente a mão direita, é também alguém hábil, desembaraçado, rápido e expedito; a palavra destreza vem daí. Ao passo que, ao indíviduo atabalhoado, atrapalhado e desorientado, é dado o adjetivo de canhestro, aquele a quem falta a destreza. Minhas professoras primárias queriam-me ambidestro - olha o preconceito de novo aí -, hábil com as duas mãos. Por que não ambicanhestro, e com o mesmo sentido?
Nós, os canhotos, ou esquerdinos como nos chamam em Portugal, favor não confundir com esquerdistas, não somos desastrados e descoordenados porra nenhuma. Tente bater uma punheta com a sua mão esquerda e veja o nível de habilidade que isso requer. Não somos desastrados. A maioria destra é que organiza o mundo de forma a nos sabotar. Vai me dizer que se você vivesse num mundo onde tudo está posto ao contrário, não iria quebar um copo de vez em quando?
Há muitos prós e alguns contras em se ser canhoto. Primeiro as más notícias : uma pesquisa realizada entre 25.000 pessoas, de 12 países, revelou que temos uma maior propensão que os destros a nos tornarmos alcoólatras, disléxicos e raivosos. Pudera. Vivendo num mundo que é uma imagem especular invertida do que ele deveria ser, quem é que não fica puto da vida e alivia tomando umas.
Porém, uma pesquisa da St. Lawrence University mostrou que o QI dos canhotos tende a ser maior, mostrou que a sabotagem destra que não nos mata, só nos fortalece. Obrigados que somos a sempre chutar com os dois lados do cérebro, tornamo-nos mais inteligentes, mais criativos e adaptáveis. A porcentagem de canhotos na população em geral, como já disse, é de 10%; entre os integrantes do MENSA, ultrapassamos os 20%. No infortúnio de um AVC, temos mais chances de nos recuperar de possíveis sequelas. Como transitamos muito mais fácil entre os dois hemisférios cerebrais, se alguma função de um dos lados for comprometida, muito mais eficientemente a compensaremos com o uso do outro lado.Vamos agora a alguns dos instrumentos de tortura moderna que são usados contra nós naquelas pequenas picuinhas e hostilidades que citei mais ao começo.
A tesoura. O fio da tesoura está colocado para uso destro; tente usar a tesoura com a mão esquerda para cortar uma folha de papel, por exemplo, e você só conseguirá que ela a "mastigue". O mesmo vale para as facas de serra. Também o abridor de latas; impossível abrir uma latinha de ervilhas o manuseando com a mão esquerda. E nós, de novo, aprendemos a manuseá-los com a mão direita. As carteiras escolares de braço, as chamadas carteiras universitárias; passei anos e anos do meu colegial e faculdade sentado e escrevendo com o corpo torto, raramente aparecia alguma com o apoio do lado esquerdo. O caderno espiral; é um trabalho de contorcionismo iniciar uma linha quando a espiral está do lado esquerdo. Em instrumentos musicais como o violão e a guitarra, ou invertemos as cordas ou não conseguimos tocar nem sertanejo universitário. Se o canhoto quiser usar um relógio de pulso, também terá que fazer malabarismos para dar corda ou acertar os ponteiros do relógios, ou, de novo, treinar sua mão direita para fazê-lo. Cintos para segurar as calças os usamos com a fivela de ponta cabeça. Se compartilharmos o uso de um computador no trabalho ou em casa, o mouse também sempre estará colocado para o conforto do destro; de novo, nossa mão direita terá que rebolar para aprender a usá-lo. E os exemplos vão por aí afora.
Por essas e por outras, uns canhotos desocupados e cheios dos mi-mi-mis do Reino Unido instituíram o Dia Mundial do Canhoto, data que tem por objetivo "conscientizar as pessoas sobre os desafios que um canhoto enfrenta em uma sociedade onde 90% da população é destra".
O Dia Mundial do Canhoto é "comemorado" no dia 13 de agosto, mas só fiquei sabendo disso ontem e o texto só ficou pronto hoje. De qualquer, forma fica o registro atrasado. E tinha mesmo que ser em agosto, mês que também sofre grandes preconceitos de ser agourento. No Brasil, agosto é o mês do cachorro louco. Tinha que ser em agosto. Mês em que nasceram grandes gênios e personalidades.
Ficando restrito apenas ao campo da literatura, temos a exemplos : Nelson Rodrigues (23/08), Paulo Leminski (24/08), Jorge Amado (10/08), Millôr Fernandes (16/08), Tomás Antônio Gonzaga (11/08), Hermann Melville (01/08), Cora Coralina (20/08), Júlio Cortazar (26/08), Mary Shelly (30/08) e Charles Bukowski (16/08), cujo centenário de nascimento hoje se dá. Sem falar, é claro, de mim mesmo, essa criatura abominável que vos fala, nascido sob os auspícios do dia 15. Agosto, sem dúvida, é uma cornucópia de gênios.
Para encerrar esta postagem com chave de ouro , abaixo uma celebridade do cinema mundial, também canhota. Ela, a suculentíssima Scarlett Johansson, autografando com a mão esquerda.

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7 Comentários

  1. Quase chorei com a publicação: sou ambidestro (ou seria ambicanhoto?), ateu (mas ainda falo sobre deus para os boletos; olho para eles e digo "que deus lhe pague") e nascido em Agosto, um dia depois do Leminski.
    Curiosamente, quando eu era mais novo (criança), eu só escrevia com a mão esquerda, mas a galera da família se incomodava e dizia que o certo era usar a direita, então fui aprendendo a escrever com as duas (com a direita, artigo; com a esquerda, poesia). Hoje em dia penso que o incômodo da família era causado por alguma superstição católica de que ser canhoto tem relação com ser do diabo. Talvez não seja superstição.
    Aliás, num mundo digital, quem é que não redige textos com as duas mãos?

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  2. Tá fazendo mimimi com os botões do mouse!? O windows temrecurso para inverter a posição dos mesmos.

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    1. Rapaz, aqui não tem nada de inversão, não. Sai pra lá com essa coisa de invertido. Eu uso o mouse com a mão direita, mesmo; na raça. Que eu sou feito vocês aí do Sul, eu não tomo mel, mastigo abelha.

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  3. Feliz aniversário, velhinho! Sou canhota também.

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