"J" Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Por Lá

"J", como ela própria se identifica, para assim permanecer anônima, conta que caiu aqui no Marreta, entre tantos alçapões e arapucas espalhados pela net, através da postagem Sommelier de Buceta e, inacreditavelmente, não fugiu horrorizada e indignada, aninhou-se por aqui.
Meus textos, sei disso, não são palatáveis à maioria semiletrada, de certezas e opiniões compradas em supermercados, que campeia pelo mundo real e mais ainda pelo virtual; minha ironia azeda e meu senso de humor tridestilado em retorta de cobre azinhavrado, para os quais o soro antiofídico e o antirrábico são os únicos antídotos, podem mesmo soar como machistas, sexistas, preconceituosos, enfim, para o populacho em geral, para a choldra ignóbil, para a classe C, que não consegue dar conta de nada maior que twitters e mensagens de whatsapp, que não consegue ler nem o prefácio de um livro, quanto mais o pré-difícil.
Mas "J" veio, viu e venceu. Entedeu a grande farsa, a grande brincadeira que é o Marreta do Azarão, o que, logo de cara, já a revela de uma percepção e sagacidade acima da média.
Desde então, há quase um mês, "J" faz comentários quase que diários em minhas postagens. Bem-humorados, espirituosos, sarcásticos e, alguns, até maliciosos, porém sem o menor resvalo na vulgaridade. De um mês para cá, "J" trouxe um toque feminino aos bastidores do Marreta; houve até caso de leitores do blog a quem "J" fez reavivar velhas lembranças, assoprou velhas brasas.
Plenamente convencido de sua inteligência, fiz uma proposta a "J" em um de seus comentários, perguntei-lhe se não gostaria de, eventualmente, escrever alguns textos e publicá-los no Marreta, ser uma colaboradora honorária, uma Azaronete.
"J", como toda mulher que se preza, que se valoriza e se dá ao respeito, deu uma de difícil, fez cu doce e disse-me não, recusou meu convite, impiedosamente. Mas, pelo visto, a lábia do Azarão, apesar de oxidada e corroída pelo tempo, continua afiada : alguns dias depois, "J" disse ter escrito um texto e perguntou se eu queria publicá-lo; o texto, segundo ela, não estava grande coisa e coisa tal.
Claro que eu queria publicá-lo, sugestões e colaboradores são sempre bem-vindos. E confesso que ainda que o texto não fosse mesmo grande coisa, eu o publicaria com elogios moderados. Sei ser gentil com quem tem a mesma postura para comigo. Mostrar um texto a alguém, ainda mais a alguém que não se conhece, é um ato de extrema coragem (ou de loucura), é desnudar a alma ao demônio para ver se ele se interessa ou não em comprá-la. Respeito isso. Publicaria-o de qualquer forma, ainda que o achasse uma perda de tempo.
Não precisei, no entanto, gastar minha limitada reserva de polidez nem pôr a rebolar meu inelástico jogo de cintura, não precisei exercitar, com grandes riscos de cãibras, minha destonificada musculatura social : "J" enviou-me o texto e ele é bom pra caralho! 
Alguma coisa em seu texto, lembrou-me de dois poemas : Eu, de Florbela Spanca,(Eu sou a que no mundo anda perdida/Eu sou a que na vida não tem norte/Sou a irmã do Sonhoe desta sorte/Sou a crucificada ... a dolorida ...) e Retrato, de Cecília Meireles (Eu não dei por esta mudança/tão simples, tão certa, tão fácil:/- Em que espelho ficou perdida/a minha face?)
Abaixo, finalmente, o texto de "J", ao qual intitulei de"J" Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Por Lá, em um plágio descarado (ou em uma referência, como preferem os intelectuais, os citadores) do título de um livro de Lewis Carroll.

ESPELHO
Eu sou aquela velha dor fina que te perturba faz tempo, aquele ligeiro incômodo que se passou por passageiro e da noite para o dia se tornou fiel companheiro. Eu sou a tua sina, o teu castigo, teu destino, o teu carma.
Eu sou aquela angústia crescente, aquela ânsia infinita prestes a escarpa-lhe entre os dentes. Aquela sensação esquisita que te toma de assalto. Eu sou aquele estalo inaudível, aquela explosão orgástica que te reparte em mil pedaços – o Big Bang, do seu eu.
Eu sou tua paranoia noturna, a sarna da tua alma, abstinência profunda, aquele repugnante vício incurável.
Eu sou teus pecados furtivos, tua psique clandestina, o reflexo no teu olhar sovina e avarento. Eu sou a inveja ferina, a gula na tua saliva, a ira dos teus abraços, a tua arrogância repulsiva.
Eu sou a preguiça excruciante do cotidiano, que te mantém impassível diante de um milhão de sorrisos iguais e sem graça. Eu sou a impiedosa luxúria que te consome a conta-gotas, dia após dia, Prometeu.

OHLEPSE
Eu sou aquela vontade esquecida, aquela parte que tu ruminas, sou teu pesadelo das segundas-feiras, tua alforria nas madrugadas. Sou teu mais colérico segredo. A sujeira debaixo do teu tapete.
Eu sou aquela onda que te adormece. Sou tua Capitu, Bentinho. Sou o perfume que te entorpece, a luz que te encadeias, serpente que te enamora. A brisa boa que te alicia. Eu sou a doçura insuportável dos teus beijos, a voracidade irreprimível dos teus desejos.
Eu sou as marcas que o tempo infligiu no teu rosto, as cicatrizes que te tatuam. Eu sou o medo incontrolável que te arrebata, a morte implacável que te rodeia. Sou a sombra nas tuas olheiras, o batom vermelho na tua camisa.
Eu sou aquela vibração no teu peito, a lágrima indesejada, a palavra suprimida. Eu sou a coletânea dos teus erros, o desdém dos teus fracassos. Sou a efervescência discreta que te percorre, o falso remorso que agora sentes. Eu sou aquele antigo combate que insistes em ignorar.

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16 Comentários

  1. Acho que não preciso dizer que me senti imensamente prazenteira, não me atrevo a descrever o que sinto agora, não conseguiria explicar. Só posso agradecer pelo convite, pela delicadeza, pelo espaço e pela paciência. De fato, não me atreveria a publicar nada do que escrevo e é bem verdade que a maioria dos textos são eliminados como mensagens ultrassecretas, no estilo "queime depois de ler". Lembro-me do dia em que visitei pela primeira vez a sua morada, foi realmente obra do Senhor dos Acasos da Internet - o poderoso Google, posso afirmar com toda a certeza que foi o melhor presente literário que 2015 me trouxe. Os textos são de extrema qualidade, um deleite para o fim do expediente, obra de um autor tão anônimo para mim quanto a minha insignificante existência para ele, mas que passo a conhecer paulatinamente. Sujeito este, que por produto e obra do destino (tenho certeza que se eu dissesse agora que seu talento é divino levaria uns bons corretivos rsrs) ou como suspeito resultado de uma série de aventuras extraordinárias, atreve-se a invadir-nos com suas palavras, cuspindo verdades e tocando os leitores, meu amigo imaginário rsrs.
    Azarão, meu caro, que você continue azedando as novas vidas por mtos e mtos anos.
    Mais uma vez obrigada!

    "J"

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    1. Eu é que agradeço o belo texto. E sempre que escrever algo e pensar em jogar fora, faça-o aqui, na lixeira do Marreta.
      Conhecia os poemas de Florbela Spanca e Cecilia Meireles que citei? Não acha que o que escreveu tem ares semelhantes?

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    2. Confesso que esse de Florbela Spanca não conhecia, mas Cecília Meireles é uma grande amiga, encontrei mtas semelhanças é verdade, ainda que o meu seja infinitamente mais pobre. Qr sabr a minha inspiração no dia em que escrevi esse texto??? Estava assistindo Ninfomaníaca -parte 2 de Lars von Trier, sempre me impressiono com a parte na qual a protagonista passa a trabalhar "cobrando" dívidas, para isso ela usa da sua experiência para descobrir o pior segredo do devedor e assim ameaça o tornar público caso não pague. Ela não sente nenhuma repugnância, ao contrário sente profunda admiração diante daqueles q resistem aos seus instintos. Acho o filme td mto interessante, revela uma visão bem distinta. Surpreso?
      "J"

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    3. E por que eu estaria surpreso?
      Não sei se você leu os comentários, mas seu texto agradou bastante.

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    4. (risos) Vc como sempre é mui gentil, agradeça por mim. Sobre a surpresa, ocorre que a sua pequena (pq tenho 1,64) cópia morena e pirata de Alice, sempre cai em buracos infinitos tentanto imaginar o q levou o autor (inclusive vc) àquelas palavras. Tenho q admitir é um divertimento.

      Agora Azaronete "J" :p

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  2. Estava com o post do Paulo Vanzolini ainda “na retina” quando encarei o texto do espelho. Em um primeiro momento, achei que tinha alguma coisa de “Ronda”, mas descartei em seguida. Foi aí que me lembrei da música “Sob medida”, do Chico. Claro que não tem nada a ver um texto com o outro, mas diria que o “espelho” é a prosa da poesia do Chico – e vice-versa. Gostei muito, acho que você encontrou uma colaboradora que manda muito bem. Só precisa parar de jogar fora o que escreve, pois isso é maluquice. Eu sou o oposto disso, pois, se vacilar, até lista de supermercado eu guardo (e publico!). Parabéns aos dois.

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    1. Eu também não jogo nada fora e acho que há um quê de megalomania nisso, em achar que qualquer rabisco que façamos tem algum valor.
      Reamente, há algo de Sob Medida no texto.

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    2. Adorei o liame com a música, meninos. :) Blogson, obrigada, de verdade! Vcs estão completamente certos, porém mtas vezes não consigo, vejo refletida nos textos minha intimidade e mtas vezes é cm uma alergia insuportável. Algo de Clarice (q tb jogava mtos dos seus trabalhos fora). Loucos somos tds nós, "prontos para o chá"?
      "J"

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    3. De cogumelos cultivados pelo Chapeleiro?

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    4. (risos) Há qm diga que um bom chá renova a vida. Existem realmente uma incontável variedade, de alecrim a zimbro; de calcinha a ginseng e catuaba. Cada um vai naquele de sua preferência ou busca aquele que lhe parece ter mais utilidade rsrs :p
      "J"

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  3. Que maravilha !!! O Azarão fazendo escola.

    Permita-me confessar uma coisa: Não sou muito chegado a poesias, poemas, filosofias e etc e tal mas acho uma maravilha os seus textos devido a habilidade e intimidade com a nossa lingua mater.

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    1. Também vou confessar : tenho pouquíssima paciência para ler poesia dos outros, salvo alguns, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Florbela Spanca, Ferreira Gullar...
      O próprio Carlos Drummond de Andrade acho um saco. Filosofia, então, acho um embuste.
      Mas gosto de escrever e, confesso de novo, fico surpreso em ver que há pessoas que leem meus textos, principalmente os mais longos. Depois que acabo de escrevê-los no papel, digitá-los e corrigi-los, nem eu tenho mais paciência para lê-los.
      Por isso, fico muito grato por seus elogios.
      Identifique-se. Ou adote um pseudônimo. "J" já tem dono, mas há ainda 25 letras restantes no alfabeto.

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  4. Cara "J"
    Já acompanhava o blog, mas confesso que seus comentários fazem eu retornar com mais frequência, estas velhas brasas pertencem a você. Sua sagacidade e inteligência me encantaram.
    E hoje eis a minha surpresa ... Texto maravilhoso, espero que seja uma contribuição de muitas.

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  5. É Marreta, a coisa está complicada! Não quero inflacionar a quantidade de comentários, pois já tinha feito um antes, mas não resisto a uma piadinha: seu blog está parecendo churrasqueira em fim de festa - cheia de cinzas e brasas dormidas. Impressionante!

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