Tristeza e Isolda

Rolando Boldrin nos conta um "causo":
 "O sujeito, em viagem pelo interior, parou em uma pequena bodega, em uma pequena venda de secos e molhados à beira de uma estrada de terra batida, para espanar o pó dos ossos e fugir do sol a pino.
Pediu um prato feito para o dono da venda e foi para a mesa com uma cerveja gelada, refrescar a goela e a alma enquanto esperava pelo prato.
Ouviu, então, um trinado maravilhoso, um gorjeio como nenhum outro ouvira. Olhou em direção ao mavioso canto e viu que ele era executado por um canário-da-terra numa gaiola. Embevecido pelo canto, foi ter com o dono da venda no balcão na intenção de comprar a avezinha.
- Não vendo, não, dotô - disse o dono - é de estimação das crianças.
O viajante insistiu. Que o dono da venda estipulasse um preço.
- Então, tá, dotô, quero mir reais por ele.
Mil reais estava muito além do que o viajante podia pagar. Reparou que havia outra gaiola dentro da venda, na parede oposta, com outro canarinho nela, porém, esse calado, quietinho, só observando tudo. Supôs que, pela convivência com o canário cantor, o calado também soubesse cantar. 
- Mil reais tá muito caro pra mim - disse o viajante -, mas se o senhor me fizer um precinho bom, levo aquele outro ali, que não canta.
- Por aquele eu quero cinco mir reais.
O viajante estranhou : se pelo que canta uma maravilha, o senhor quer mil reais, por que quer cinco mil pelo que não canta nada? 
- É que aquele é o compositor. - arremata o caipira."
O "causo" é narrado à guisa de piada, e é deveras espirituoso, mostra a esperteza do caipira, do matuto, que de ingênuo e simplório, como podem mal julgar alguns "urbanoides", nada tem; antes pelo contrário, tem é a matreirice de uma raposa.
Mas o "causo" também resvala, na certa sem querer, inadvertidamente, na questão do desprezo que o Brasil tem pelos compositores de canções. Desprezo, talvez, nem seja o termo adequado. Desprezo,  podemos nutrir por algo que conhecemos e o compositor brasileiro é um ilustre desconhecido. Acredito que esteja mais para uma falta de reconhecimento, um descaso.
Poucos labores - entre eles, o do professor - são menos valorizados e incógnitos que o do compositor popular. Não há o costume - nem sei se há a obrigação legal - de programas de rádio e de tv informarem ao público sobre o nome do compositor da canção ao início ou ao fim de sua execução.
Quantas e quantas canções marcantes em nossas vidas, interpretadas e imortalizadas por canários-cantores não são de autoria dos mesmos, mas sim de anônimos e mudos canários-compositores?
Morreu na semana passada - só fiquei sabendo hoje - uma das maiores canárias-compositoras de nossa MPB : Isolda Bourdot. Seu nome, desconhecido da grande maioria; suas canções, velhas amigas de bar e de fossa dos cotovelos, dos chifres e dos corações de todos os brasileiros.
E não compunha para qualquer canário metido a cantor, não, a Isolda. Compôs para ninguém mais ninguém menos que o canário-rei, Roberto Carlos. É dela o clássico Outra Vez, que se tornou, ao longo do tempo, um dos carros-chefe do régio repertório - "você foi o maior dos meus casos, de todos os abraço o que eu nunca esqueci, você foi dos amores que tive, o mais complicado e o mais simples pra mim". É pouco ou querem mais?
Em parceria com o irmão Milton Carlos - uma das vozes mais melodiosas já surgidas na MPB, morto precocemente aos 22 anos em acidente automobilístico e autor das também clássicas Um samba Quadrado e Memórias do Café Nice -, compôs outras pérolas para o Rei : Jogo de Damas (Eu sei da sua vida e do seu passado/De um tempo perdido, irrecuperado/Eu sei da poeira/De todos os seus passos/Das suas trapaças, dos seus abraços) e Um Jeito Estúpido de te Amar (Eu sei que eu tenho um jeito/Meio estúpido de ser/E de dizer coisas que podem magoar e te ofender/Mas cada um tem o seu jeito/Todo próprio de amar e de se defender).
Segundo o perfil da musicista no feicibúqui, Isolda morreu vítima de um infarto do miocárdio, aos 61 anos.
No momento de sua morte, tenho certeza, houve não um minuto de silêncio por parte dos sempre loquazes canários-cantores; houve todo um LP de silêncio, de chiados e de choros engolidos. Da parte do Rei, talvez até mais.
Outra Vez
(Isolda)
Você foi o maior dos meus casos
De todos os abraços o que eu nunca esqueci
Você foi dos amores que eu tive
O mais complicado e o mais simples pra mim.

Você foi o melhor dos meus erros
A mais estranha história que alguém já escreveu
E é por essas e outras que a minha saudade
Faz lembrar de tudo outra vez.

Você foi a mentira sincera
Brincadeira mais séria que me aconteceu
Você foi o caso mais antigo
O amor mais amigo que me apareceu
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim outra vez.

Esqueci de tentar te esquecer
Resolvi te querer por querer
Decidi te lembrar quantas vezes eu tenha vontade
Sem nada perder.

Você foi toda a felicidade
Você foi a maldade que só me fez bem
Você foi o melhor dos meus planos
E o pior dos enganos que eu pude fazer
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim outra vez.
Isolda e o Rei

Para ouvir Outra Vez, é só clicar aqui, no meu enlutado MARRETÃO.

Postar um comentário

0 Comentários