Minha Planta Carnívora de Estimação

Nesta minha última viagem, a Monte Verde (MG), por vontade da esposa, fui levado a um orquidário local. Gosto das orquídeas. Acho-as belas, é óbvio. E eis o entrave : o óbvio de suas belezas. O inegável e o indiscutível de suas paletas de cores, da precisa geometria escalena de suas pétalas e outros elementos florais, das notas afinadas de seus perfumes. Precisão e simetria demais para serem verdade. E não são, embora muito nos agrade os olhos.
Orquídeas parecem com aquelas modelos gostosas das capas das revistas, dão-me a impressão de que foram passadas por algum programa de edição digital de fotos, por algum tipo de photoshop.  E foram. Não por um programa de edição de imagens, claro, mas sim por um longo processo de, digamos assim, edição genética.
A grande e esmagadora maioria das orquídeas hoje à venda e/ou em exposição não são naturais, são linhagens manipuladas pelo bicho homem, plantas obtidas através de meticulosos cruzamentos entre variedades nativas e submetidas a pacienciosos e rigorosos processos de seleção dos híbridos com características desejáveis e descarte dos malfadados. Décadas, centenas e mesmo milhares de anos (supõem-se que o cultivo de orquídeas tenha se iniciado na China, há mais de 3000 anos) de eugenia e limpeza étnica para que tenhamos as orquídeas que hoje vemos nas floriculturas, supermercados e lojas de jardinagem. Como eu disse, precisão e simetria demais para serem de verdade.
A gente olha para os peitões perfeitos e simétricos da modelo da capa da revista e logo vemos que tudo aquilo não pode ser natural. Gostamos - muito - do resultado, mas sabemos que é puro Pitanguy e silicone. Olhamos para uma orquídea e nos encantamos com suas formas, seus roxos, vermelhos, amarelos e alaranjados - muitas são verdadeiros pôres-do-sol envazados -, mas sabemos que a natureza jamais produziria tais formas, desenhadas a esquadro e compasso, e tais matizes. Gostamos do resultado, mas sabemos que são produtos de manipulação humana.
As orquídeas são as moças de boas famílias que caíram nas mãos de más companhias - no caso, nós, humanos - e foram desvirtuadas dos bons caminhos ditados pela Mãe Evolução, que foram seduzidas pela vida vazia dos holofotes e das passarelas das floriculturas.
Nunca possuí uma orquídea. Nem uma modelo de capas de revistas. Ambas, caras demais para os meus desmilinguidos bolsos. Nem tenho ambiente adequado para acomodá-las, a sacada do apartamento recebe de chofre o inclemente sol da tarde. Orquídeas, assim como as modelos das capas das revistas, gostam de sombra e de água fresca.
Havia, porém, no orquidário, percebi-o pelo canto da vista esquerda, um outro recinto bem menos frequentado que o das orquídeas. E onde há menos gente, é para lá mesmo que vou. Um pequeno ambiente, também úmido e abafado, com plantas carnívoras.
Opa! Plantas carnívoras são outra estória. São de um outro naipe. Não trilharam o caminho da beleza fácil. Não nasceram no berço de ouro de uma verdejante, exuberante e fértil floresta tropical. Não tiveram quaresmeiras, embaúbas, bromélias, frondosos ipês amarelos, alegres macacos e multicoloridas araras como colegas de escola. Plantas carnívoras foram dadas à luz em manjedoura de lama e lodo podres. Batráquios gosmentos, crocodilos e mosquistos hematófagos foram seus amigos de infância e de reformatório.
As plantas carnívoras são, em sua quase totalidade, nativas de terrenos alagados - pântanos, brejos e charcos. Nascidas em berço de águas fétidas e estagnadas, e amamentadas por solos argilosos, pouco aerados e, sobretudo, paupérrimo em nutrientes minerais, em especial o nitrogênio, as plantas carnívoras, desde a mais tenra idade, perceberam que não adiantava pedir colinho à Mamãe Natureza. Não deram uma de coitadinhas, de excluídas da natureza. Não se vitimizaram, dizendo que não tiveram as mesmas chances na vida que as rosas, os gerânios e as margaridas. Não pleitearam cotas taxonômicas de inclusão. Antes pelo contrário. Foram à luta. Ralaram. Suaram. Adaptaram-se.
Para suprir a deficiência de nitrogênio mineral no solo, desenvolveram arapucas e enzimas digestivas para obtê-lo dos insetos (algumas plantas carnívoras de maior porte chegam a digerir pequenas rãs e filhotes de passarinhos ), da digestão da proteína animal.
(Pããããããta que o pariu. Se até entre os vegetais há uma ala de dissidentes da fotossíntese, que se lambuza de carne, imagina só se eu, um dia, vou virar vegetariano? Porra nenhuma que vou. Aliás, será que um vegetariano comeria uma salada de folhas de plantas carnívoras?)
E quem um dia irá dizer, das plantas carnívoras, que a beleza lhes é ausente? Plantas carnívoras têm uma beleza menos evidente, uma beleza mais rústica, áspera até, muitas vezes, por ser a beleza do sobrevivente, não a do privilegiado; por ser a conquistada na forja implacável da seleção natural, não a recebida de mãos beijadas no conforto de uma estufa climatizada, por ser, enfim, a beleza crua do predador, não a requentada e pasteurizada da mocinha presa na torre do castelo.
Nunca tinha me passado pela cabeça comprar uma planta carnívora, até então. Por sabê-las de ambientes pantanosos, sempre supu-las, por errônea associação, também plantas de sombra, de trevas. Informado pelo dono do local, um doutor em botânica, de que as plantas carnívoras, pelo contrário, necessitam de muitas  horas diárias de exposição direta ao sol e mais impulsionado pela animação e pelo deslumbramento do Raul, meu filho, ante a possibilidade de ter uma plantinha que come insetos, só antes vista por ele nos desenhos do Scooby-Doo, pensei : por que comprá-la, por que não comprá-la? Comprei-a-a.
Uma dioneia. Conhecida também por papa-mosca. A mim, sempre lembra da terrível lenda da vagina dentata.
Por ser um exemplar pequeno da planta (não é a da foto acima, que tem caráter meramente ilustrativo), uma muda transplantada de outra maior, paguei barato por ela, dez reais.
Há duas semanas instalada confortavelmente na minha sacada, a receber regas diárias e horas a fio de sol, e nada dela pegar sequer uma merda dum pernilongo da dengue. Será que a muda não chegou a "pegar"? Morta? Com defeito de fábrica? Mais um embuste, destes pregados a turistas otários?
Até que, há três dias, numa noite, pouco antes de ir me deitar, resolvi tirar a teima. Abati um pequeno mosquito que rodava ao redor da lâmpada da sala e com uma pinça o depositei dentro de suas folhas modificadas em armadilhas, dentro de sua boca. Ato reflexo, as folhas se cerraram de pronto. Trancafiaram o inseto em suas entranhas.
Animado, capturei ainda outro inseto e, de novo, a alimentei. Desde então, suas folhas permanecem fechadas, digerindo lentamente suas presas, ao fim do quê, se abrirão novamente, revelando as carcaças secas dos insetos.
Longe de se deixar contagiar pela minha animação, minha esposa, que tudo olhava de longe, falou : "você já alimenta as gatas e os peixes-de-briga, vai agora ficar caçando bicho pra alimentar planta carnívora?"
- Só até ela crescer e aprender a caçar sozinha, ela ainda é filhotona, respondi.

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2 Comentários

  1. Prezado Azarão,
    Caçador que sou de cousas bizarras na internet (eis que sou aquele mesmo que o instruiu sobre as Sacias),não pude deixar de observar o faisão que foi sua frase sobre a Dioneia publicada nesta dominical efeméride - "A mim, sempre lembra da terrível lenda da vagina dentata".
    Tendo sido educado, por pressão materna, em ambiente escolar religioso e, "ça va sans dire", misógino, muito me atormentou, no período pubertário, a narrativa, acalentada pelos padres, da "vagina dentata", supostamente característica dos súcubos, que nos visitariam durante nossos sonhos nas horas mortas da madrugada a fim de nos privarem - inocentes mancebos que éramos - de nossa virilidade.
    Como percebi que, mui embora já pertençam ao antanho os tempos da "escola risonha e franca", compartimos do mesmo recôndito medo, ouso sugerir que assista ao filme "Teeth", uma versão bem-humorada do tema, a qual, tanto quanto saiba, não chegou às telas da Pátria amada, embora tenha tido algum sucesso no exterior. O link é:
    https://rarbgproxied.orgdownload.php?id=562dxym&f=Teeth.2007.720p.WEBRip.x264.DD2.0-FGT-[rarbg.to].torrent
    Certo estou que a hilaridade é o melhor meio de afugentarmos nossos receios. Se esse não for seu caso, por favor desconsidere.

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    1. Rapaz, você escreve muito bem e, percebo, tem um vasto conhecimento de lendas. Já pensou em fazer um blog?
      Também sou partidário do humor contra os medos, isto também compartilhamos.
      Vou baixar o filme pelo link enviado.
      Valeu, de novo, pelo comentário.

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