Tem um cara que, em todas as sextas-feiras e sábados, ao anoitecer, no lusco-fusco, aguarda pela esposa sentado à soleira de um salão de cabelereiras próximo ao meu apartamento - pelo que pude concluir, ela trabalha no estabelecimento.
Até há algum tempo, ele tava sempre de bermuda, chinelão e com um latão de cerveja na mão, a tornar menos fastidiosa a sua espera.
Coincidia de eu passar, por essa mesma hora, pela outra calçada, de volta do mercado, abastecido também de minhas cervejas, a me tornarem menos fastidioso para os que comigo convivem.
Ele ia esperando pela esposa, esvaziando sua lata e observando o movimento. Passava um carro, ele observava, seguia-o com os olhos; uma motocicleta, ele observava; um cachorro, ele observava; uma gostosa, ele comia com os olhos. Observava tanto que observava até a mim.
Sempre que eu passava a carregar minhas sacolas, ele, do outro lado da rua, soltava um "oi", ou um "oba", ou um "tá bom?" e erguia a lata de cerveja, com o braço a meio pau, a modo de cumprimento. Eu respondia com um "oba", ou com um "tudo bem?", e correspondia ao seu aceno com um menear de cabeça; às vezes, com outro aceno, quando uma de minhas mãos se encontrava livre das compras do mercado.
O cara sumiu da frente do salão por um bom tempo. E voltou há umas poucas semanas. Continua a esperar pelo término do expediente da esposa em todos os anoiteceres das sextas e dos sábados; porém, sumiram-lhe a bermuda, o chinelão, a lata de cerveja. Camisa e calça sociais, sapatos engraxados e um telefone celular, um desses de última geração, são a sua nova estampa. O cara não observa mais nada. Absorto, absorvido, abduzido pelo celular.
Passa um carro em alta velocidade, ele não observa; uma motocicleta com o escapamento aberto, ele não observa; pode um cachorro confundi-lo com um poste e lhe mijar na perna, ele não observa; passa a gostosa, ele não observa, não mais lhe fareja o cheiro da buceta.
Dia desses, eu tinha me atrasado um tanto no mercado e o vi já de saída, indo embora com a esposa. Num carro em cuja traseira havia um adesivo : "Eu sou de Jesus".
Agora, quando desço pela rua e o vejo do outro lado, face iluminada pela tela do celular, eu até passo mais rente aos muros das casas, tento até mais me ocultar por detrás das árvores nas calçadas, imiscuir-me às suas sombras.
Vai que ele me perceba e me acene com suas novas roupas, seu novo vício, sua nova fé? Com o que poderei lhe acenar em retorno ? Com a benga. Só poderá ser com a benga.
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